quarta-feira, janeiro 31, 2007

Contar música (duas perspectivas) - Parte 1

“ A QUEDA DA NOITE”



“I’m waiting for the night to fall
I know that it will save our soul
When everything’s dark, keeps us from a stark
Reality

I’m waiting for the night to fall
When everything’s bearable
And there in the still, all that you feel
Is tranquillity

(…)

I’ve been waiting for the night to fall
I know that it would save our soul
When everything’s dark, keeps us from a stark
Reality”

Depeche Mode





Parte I – Dr. Albert Walcott


Era manhã cedo e a Primavera já aquecia o esquálido consultório entrincheirado entre tantos outros no sexto andar da enorme torre do enorme hospital.
Na atafulhada secretária do Dr. Albert Walcott um dos cantos estava ocupado por uma pequena caixa de chocolates deixada, durante a consulta anterior, pelo Sr. Theodore Maplewood.
Um gesto simples e delicado ao qual não tinha sido capaz de retribuir.
Tão pouco lhe conseguiu dizer que em breve morreria.





Passaram longos cinco minutos desde que a porta largada pelo Sr. Maplewood bateu.
Walcott está pendurado à janela, a acabar mais um cigarro que sentiu que não poderia deixar de fumar naquele momento. Mais um engano, mais cinco minutos entregues à busca infrutífera de tranquilidade.
O sol sobe depressa e rompe, despudorado, por entre as torres de betão. Há gente dispersa por várias das centenas de janelas inscritas no horizonte. Uns fumam, uns olham, uns recebem o seu pedaço de luz, uns falam, uns falam sozinhos, uns têm batas brancas, uns verdes, uns azuis e uns estão nus. Mas todos partilham da única coisa que os une naquele espaço – liberdade. A liberdade de estarem entregues só a si, de se saberem não observados, livres de julgamento, livres de reparo, livres de não pensarem em mais nada senão em si, no seu conforto ou na sua dor, na sua vida ou na sua morte, no sol que chegará ou no sol que partirá. Liberdade enjaulada, a que melhor sabe.
Walcott apaga o cigarro e compra mais cinco minutos à paciência do próximo doente – espera que o cheiro se atenue. Nestes pensa:





“Merda de vida a minha”; “O que me fazia bem era poder ter aqui música”; “Para que é que servia eu dizer-lhe que a situação está fora do nosso alcance?, o que é que ele ganharia com isso?, passaria o tempo que lhe resta a viver a morte, morreria durante 2 ou 3 ou 4 ou 5 meses”; “Amanhã tenho o dia livre, tenho que o aproveitar bem, e não ficar parado como de costume, a decidir o que fazer antes de assumir não fazer nada”; “ Que chocolates serão estes? Para quê os doces querido Maplewood? Como conseguirei engoli-los sem mágoa? Como lhos poderei retribuir quando tudo o que tenho para conversar consigo são horrores?”; “ Se houvesse um rim compatível oferecer-lhe-ia 6 meses, talvez um ano de vida. Muito pouco pelos chocolates, mas seria alguma coisa”; “Apetecia-me ouvir o “Heartbeat” dos Knife, ficaria um bocado mais bem disposto”; “Eh! é verdade, hoje vem cá o Vincent jantar comigo, tenho que lhe ligar antes que ele se esqueça, não quero enfrentar o dia inteiro sem um pouco de companhia. Que bom, vem o Vincent, sempre tão bom”; “ Mas tinha que lhe ter dito, porra. Não só é o meu dever como é muita presunção minha achar que sei o que é melhor para toda a gente. Tinha que lhe ter dito. Merda”; “Tenho que chamar a Sra. Darcy, ou ainda arranjo confusão”; “Mas se ele me deu os chocolates é porque, assuma ou não perante a sua consciência; diga o que disser, ainda acalenta alguma esperança, e não é que tenha a ingenuidade de achar que será melhor tratado por causa da oferta...mas é assim que as pessoas se comportam na generalidade... e que direito tinha eu, do alto da minha ciência, de lhe devastar o pobre coração? Quem ganharia com isso? A lei e a verdade, dois conceitos..”; “Como estará o Vincent? Falo-lhe da ex-namorada ou não? Espero que desta vez se lembre que estou a trabalhar e não traga vinho”;





- Sra. Darcy, ao gabinete 6 por favor.

1 comentário:

Anónimo disse...

ainda bem que o paulo colocou um link para o teu blog. gostei imenso de ler. um beijinho. alice.