terça-feira, fevereiro 06, 2007

Contar música (duas perspectivas) - Parte 2

"A Queda da noite"
Parte II – Theodore Maplewood



Era meio da manhã e o Inverno ainda não deixava a Primavera iluminar convenientemente os dias. Nesta época, só a meio da tarde é que o Sr.Maplewood deixava de sentir as pernas tremerem-lhe de frio, dos joelhos para baixo. O estigma subtil de tudo aquilo a que a sua condição o resumia: um corpo frágil, de quem perdeu a carruagem, de quem, sem querer, se desalinhou do resto dos comparsas do mundo. Uma carcaça débil, seca, desgastada e quase rota de um velho desbotado, porém desobediente, descontrolada e quase insurrecta, como uma criança teimosa. Era ,enfim, o paradoxo a que se via condenado.
Passaram dez minutos desde que saiu do consultório do Dr. Walcott, e nesta altura desce as escadas, fugindo ao elevador como forma de retaliar contra a doença. À medida que os degraus serpenteiam por debaixo dos seus pés as janelas interpoem-se-lhe furando o amarelo pardacento das paredes. Prefere olhar por elas, entrevendo os seus pares, que internados, por ali desfilam, olhando o céu, fumando, falando e trocando olhares. A alternativa é partilhar o olhar com quem sobe ou desce as escadas: médicos, estudantes, auxiliares,visitas, enfermeiros, enfim, uma infinidade de pessoas demasiado vivas.



Enterrado até às orelhas está o seu chapéu de abas largas. Feltro azul, o preferido do seu amor. Lembra-se de o terem escolhido, juntos, numa tarde de ócio, há meia dúzia de anos atrás.
Mais que a bengala ou os óculos de armação espessa, sabe que é este o adereço, que, de outra forma, também o desajusta das restantes pessoas. Mas dessa diferença gosta. Não é o desajuste histórico do “seu tempo” para o “tempo de agora” que lhe pesa, mas sim o desencontro involuntário entre o seu “mundo de dentro” e a forma como se move no “mundo de fora”, a guerra sem fim para a qual não se alistou e para a qual não existem tréguas ou cessar fogo – esse desequilibrio permanente, esta vida em vertigem e que não tem solução. De tão diferente que é debater-se voluntariamente com oponentes identificados, ou inadvertidamente, sem inimigo nenhum.



Decide parar no terceiro piso para comprar os jornais. Enquanto surpreende um jovem de bata branca, que esconde um jornal desportivo nas páginas centrais de um outro jornal, deixa que se lhe perca o olhar pela paleta de cores que emana daquela pequena banca. Da incrível sorte de objectos que ali se insinuam a sua atenção detem-se longamente sobre um livro de contos infantis, numa enorme embalagem, e que anuncia a oferta de duas miniaturas das personagens principais. Não lê o título, é o conceito que o prende e lhe aviva a memória: da única gravidez, sua e do seu amor; das noites em branco a planear delicadezas; das tardes extenuantes em que nenhuma montra das lojas especializadas ficava orfã dos seus quatro olhos apaixonados. Mas também: de como os sonhos ruiram em dias de dor; de como o fim precoce da primeira gravidez implicou a amputação de todas as seguintes; de como ele e o seu amor sentiram desintegrar a sua estrutura mental enquanto, apaixonados, trocavam caricias, se ajudavam e projectavam tornar filhos todos aqueles que deles quisessem pais.



Sr, qual é o jornal? Sr... Por favor, que jornal vai levar?
Sr...

Desculpe... Levo este, e também esse livro infantil que está atrás de si.



Debaixo do seu braço leva, agora, o jornal, o livro infantil e o livro de contos que esteve a ler enquanto aguardava a sua consulta. Uma extraordinária colecção de estórias, de um autor que deve ter ascendência estrangeira, e que o cativou pela profundidade, pela inteligência, e pela forma como consegue escrever com uma técnica diferente de todos os outros escritores – “escrita elaborada mas humilde” – pensou.
Decide descer o resto do caminho de elevador, e enquanto o espera pensa:



“Que destrutiva que é a solidão”; “Falo contigo, meu amor, mesmo não crendo que me ouças, mas a quem mais faria sentido dizer que me fazes falta?”; “ Se ao menos me sentisse capaz de fazer alguma coisa.”; “ Como é possivel que esteja tanto frio dentro de um hospital?”; “É admirável este jovem Dr.Walcott, sempre tão afectuoso e sorridente. É bom perceber que leva uma vida feliz. Deve estar sempre ocupado, cheio de desafios estimulantes, com uma vida que faz sentido.”; “Este elevador deve demorar muito tempo, talvez fosse melhor descer pelas escadas. “ Bahh. Para quê? Nada tenho que me espere. Só aumentaria a minha sensação de fraqueza”; “Bem vejo que o Dr.Walcott não me consegue dizer aquilo que ambos bem sabemos”; “Está numa posição ingrata, pobre homem. Espero que com os chocolates pense que eu acho que tudo corre bem e deixe de se preocupar com o meu espirito”; “Meu amor, decidi agora que hoje vou recuperar uma das nossas ideias, daquelas que nunca colocámos em prática: Comprei um livro e vou a uma instituição de acolhimento ler para as crianças que me queiram ouvir, que achas?”; “Desde que morreste desisti dos nossos projectos para me poupar a alguma dor, pensei que sem ti não teriam encanto, e que as faria apenas com amargura e alguma revolta, mas há pouco, assim que vi este livro, senti que se o fizesse agora estaria a concretizar o teu desejo. Era o que me pedirias para fazer se eu te soubesse ouvir, não era?”; “Se ao menos tivesse alguma familia, alguns amigos.”; “Sinto-me tão só.”; “ Por onde estará o meu irmão?”; “ Não o vejo desde que emigrou para Espanha”; “Quantos anos já passaram? Quando caiu o generalissimo?”; “Talvez não vá a sítio nenhum, ainda me mandam embora da instituição, pensando que sou um velho maluco que pode perturbar as crianças”; “Podia ir almoçar perto do mar, apanhar algum sol nas pernas”; “No fundo o Dr. Walcott é o meu único amigo”; “Como invejo a vida que ele tem, nunca deve sentir-se sozinho”; “Era assim que a vida devia ser para todos, era da mais elementar justiça que todos tivessem conforto, carinho, realização pessoal..”; “Que música irritante que dá nestes intercomunicadores do Hospital, se ao menos não tivesse ruído”; “Um belo bife grelhado na pedra, é isso que vou almoçar”; “Se é o médico o único amigo que tenho pergunto-me: que lhe ofereço eu, para além de preocupações que não lhe pertencem?”; “Finalmente, o elevador”; “Um tinto italiano saberia muito bem com o bife”; “Estou tão desamparado que o melhor que faria era acabar com a vida, não tenho nada para receber de lado nenhum”; “Se existir alguma coisa para além desta pobre vida que conhecemos, então irei para perto do meu amor”; “Se não existir irei para o seu lado”; “Esta noite, esta noite entrego-me a um estado menos agressivo de ser”; “Mas posso almoçar bem, escolher uma boa tarde para passar, olhar o mar mais umas horas”; “Sei lá eu que dores ainda me esperariam nestes próximos meses”; “Tenho que passar nos correios e pagar o gás”;“Além do mais ninguém sentirá a minha falta”.






Theodore Maplewood sai do Hospital e cumprimenta os seguranças levantando, discretamente, o seu chapéu de feltro.
Entra num taxi. Pergunta:
“Bom dia senhor, seria capaz de me levar a uma instituição de acolhimento para crianças orfãs?”

3 comentários:

hazey jane disse...

continua meu amor. que eu cresço contigo.

magarça disse...

Feliz regresso :)

redonda disse...

Ainda bem que voltaste a "postar" :)