quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Contar música (duas perspectivas)

Alguém que morre, algures
Por Paulo Kellerman

Lado A

1.
Quando chegamos junto ao riacho, paramos; fico durante alguns instantes a olhar para o pedaço de água cristalina que desliza preguiçosamente entre tufos de ervas selvagens e rochas de colorações misteriosas, como se esperasse autorização de alguém, como se já nem o privilégio de pisar terra firme me fosse concedido; por fim, quando admito que afinal estou apenas a ponderar se valerá a pena ou não, forço-me a descer do cavalo com lentidão; sento-me numa rocha, aperto a ferida com a mão. Olho o charco que as gotas de sangue vão formando lentamente, segundo após segundo, reparo como o vermelho é menos vívido do que algumas horas atrás.
Um abutre passa, lá por cima; o suave ruído provocado pelo seu voo parece-me sinistro, malévolo; felizmente, já não há nada a temer, esgotei o medo; e por isso não o olho, não me protejo. De qualquer modo, talvez nem seja um abutre. Não importa; até poderia ser um anjo: que se foda.

2.
O cavalo já se refrescou, agora passeia nervosamente, mantendo-se afastado de mim, ignorando-me; em silêncio absoluto, como se desejasse que não desse por ele, que o esquecesse. E sei o que isto significa: mas não me revolto. Permito que fuja, que me abandone.
Quando, um pouco mais tarde, o procuro com o olhar e não encontro, sou incapaz de me sentir mais só que antes. E tento não ter pena de mim, o que é difícil visto que estou a morrer. Tento, contudo.
A noite cai, transmitindo-me tranquilidade; e talvez seja melhor assim: morrer devagarinho, sem medo nem ansiedade, sentindo o silêncio e escutando a solidão. Sem testemunhas.

3.
Olho o céu, assistindo à lenta transformação do azul em cinzento; não há nuvens, não há vento; nada que distraia ou adie, nada que denuncie vida, nada que ofereça esperança. Apenas o silêncio do mundo mesclando-se imperceptivelmente com o silêncio do meu próprio corpo, engolindo-o, dissolvendo-o.
Tento erguer-me mas as dores que sinto não o permitem. Então, desisto e deixo-me simplesmente deslizar pela rocha, deito-me na terra rija, fecho os olhos; pergunto-me se os voltarei a abrir, se quero voltar a abri-los.
Acho que não.

4.
Mas mudo de ideias, por nenhum motivo; e abro-os, devagarinho. Vejo uma estrela a piscar, envolvida pelo cinzento-escuro do céu; uma única estrela, ocupando toda a imensidão do horizonte, suficiente para iluminar toda a vastidão do universo. E decido que será ela a guiar-me, que será o seu ténue brilho a conduzir-me e orientar-me entre o negrume que se abate lentamente sobre mim, que reclama o meu regresso.
Fecho os olhos porque sei que a estrela continuará lá, sei que a escuridão do universo se confundirá imperceptivelmente com a escuridão do meu olhar, da minha vida; sei que tudo é, foi, escuridão, e que estou apenas a regressar.
Penso em tudo o que fica para trás, em tudo o que me motivou e distraiu, em tudo o que me entreteve; revivo memórias e prazeres e sensações. Evoco os ingénuos mantras que pretendi que orientassem a minha existência, que me esforcei por cumprir: viver plenamente, com paixão e entrega, com fervor e voracidade, aproveitar e saborear e dissecar cada momento, cada segundo, cada oportunidade. E sorrio, incrédulo com a minha ingenuidade, com a minha arrogância. Pergunto-me: para quê, afinal?
Desisto de procurar uma resposta pouco depois; sei, agora, que não existe; que se existir, não altera nada. Mas persisto em sorrir, não sei porquê, para quê. Sorrio, simplesmente.

5.
Sinto o inesperado e estranho calor de uma expiração acariciar-me o rosto, adivinho a presença de alguém junto de mim, muito próxima, tão próxima quanto possível. Ainda me pergunto se deverei abrir os olhos uma última vez mas opto por não o fazer porque sei que não fará qualquer diferença, prefiro limitar-me a sentir a respiração serena que me acompanha, a saborear o conforto ilusório e inconsequente de não morrer só.
Talvez seja apenas um qualquer animal selvagem que se prepara para me devorar, aproximando-se porque talvez já me julgue morto; ou será que estou efectivamente morto há algum tempo e ainda não o percebi, aceitei? Poderá, por outro lado, ser o xerife, que finalmente me alcançou, que se prepara para me pontapear enquanto suspeitar que eu possa sentir dor, até ter a certeza de que estou morto, até consumir o seu ódio.
Prefiro, contudo, acreditar que quem está junto de mim é o cavalo; sim, é possível que tenha regressado, para se despedir, para me acompanhar durante o último momento, num gesto fútil de solidariedade animal, de cumplicidade entre seres que pisaram o mesmo chão e respiraram o mesmo oxigénio, seres que compreendem e aceitam a irrelevância das suas existências.
Gostava de lhe ter dado um nome. Mas não faria diferença, afinal.
Depois, deixo de sentir a respiração tocar-me o rosto; mas sei que está lá, ainda: eu é que não consigo, nem quero, continuar a senti-la. A sentir.


Lado B

1.
Encontro-o, por fim. Está deitado perto de umas rochas, junto a um riacho; morto. Salto do cavalo e aproximo-me lentamente, saboreando o ruído provocado pelas botas na terra; o vento gelado da madrugada acaricia-me o rosto, agrada-me o desconforto que provoca. Ajoelho-me e tento descobrir algum resto de vida, algum indício de sobrevivência; olho-o durante muito tempo, sem saber porquê, para quê. Depois, levanto-me e dou-lhe um pontapé na face; a cabeça abana com violência, ouve-se um estalo que me conforta. Mas não me sinto melhor.

2.
Tento lavar o pedaço de sangue que ficou impresso na bota, formando uma mancha lúgubre; não consigo, desisto. Urino para o riacho, concentrado no ruído, resistindo à tentação infantil de fazer desenhos com o jacto; e espio as montanhas, tentando calcular quanto tempo faltará para o nascer do sol.
Caminho até ao cavalo, que respira lentamente, que me olha com insegurança; faço-lhe uma carícia, que recebe com indiferença. Pego a corda e regresso até junto do morto; faço-lhe um laço à volta do pescoço e assobio ao cavalo, que se aproxima contrariado. Prendo a outra ponta da corda ao cavalo, subo para a sela.
Avançamos devagar. Atrás de nós, o ruído do cadáver arrastado pela terra provoco um murmúrio monótono e pacificador, que me agrada. Ouço o som áspero da pele do morto a ser rasgada e pergunto-me: como será estar morto?
Talvez um pouco mais monótono do que estar vivo. Apenas isso.

3.
O sol nasce de repente, inundando a pradaria com uma luz ténue e fantasmagórica, um pouco intimidadora. A tranquilidade da noite dissipa-se lentamente, devorada por ondas de ruídos e movimentos, indícios de vida, testemunhos de urgência, voracidade, frenesim.
Sinto-me cansado.

4.
O tiro atinge-me no ombro; enquanto caio do cavalo, ouço o zumbido muito próximo de mais dois disparos, que não me atingem; ainda tento suavizar a queda mas não consigo, o embate é violento e doloroso, ruidoso; grito, de dor mas também de raiva, de impotência. Depois, contorço-me e rebolo um pouco, envolvido em poeira e sangue, tento arrastar-me para um local seguro; já não consigo sentir a mão, em sua substituição sinto uma dor violenta e opressiva, uma dor que já conheço de outros tiros, que já enfrentei. Olho em redor, em busca de refúgio, de uma rocha protectora, tento orientar-me, perceber o que aconteceu, o que se seguirá; lá longe, o cavalo afasta-se, arrastando o morto consigo, deixando atrás de si uma pequena nuvem de pó.
O silêncio da pradaria regressou abruptamente, não há qualquer movimento, qualquer indício de vida; sinto-me desprotegido e exposto, totalmente vulnerável; e percebo que, agora, o meu destino deixou de me pertencer, aceito que estou dependente da vontade de alguém: suspeito que haverá outro tiro, não compreendo muito bem por que motivo ainda não veio. Seria mais fácil se escutasse, vinda de algures, uma gargalhada maléfica e acusatória, reveladora; ou os passos apressados de um cavalo a aproximar-se, o ruído metálico de balas entrechocando; seria mais fácil se a morte tivesse um rosto, se fosse lida a acusação, explicados os motivos; seria mais fácil se não houvesse espera.
Mas há: o tempo passa, lento. E tudo o que muda é a intensidade da dor.

5.
O sol queima-me o rosto, tornando-se quase tão penoso de suportar como a dor que ainda sinto no ombro, que se dissipou pelas costas, pelo pescoço, dominando-me o corpo, apropriando-se de mim. Perdi completamente a sensibilidade do braço e da mão, o que me angustia e enfurece; para compensar, gesticulo com o outro braço, que é o único elemento do corpo que me obedece com alguma agilidade, talvez apenas para provar que ainda controlo alguma coisa; depois, muito tempo depois, pergunto-me: para quê? E gostaria de ainda conseguir sorrir. (Mas, e se conseguisse? Para que serviria um sorriso, que diferença faria?)
O sangue corre devagarinho, formando um lago vermelho que seca ao sol; e a dor regride lentamente, extinguindo-se à medida que deixo de sentir o meu próprio corpo. À medida que desapareço.

6.
Penso, não sei bem porquê, no meu cavalo perdido e imagino-o algures na pradaria, cansado e desorientado, arrastando atrás de si o cadáver desfeito, tentando fugir ao cheiro da decomposição, à perseguição da morte; deixando um rasto de sangue e pele e carne e osso, um rasto de vida. Depois, recordo o morto, imagino o que terá pensado durante as suas últimas horas, ferido e impotente, enquanto morria à beira do riacho; talvez tenha, simplesmente, sentido algo próximo do que eu sinto agora: indiferença. Sim, percebo que é isso o que sinto: indiferença; pelo futuro, pelo passado; por mim.
Penso nisto; penso como o tempo passará, vagaroso; e o sangue deixará de correr. Depois, virá a noite, e com ela a tranquilidade definitiva e permanente. A paz.

7.
Um abutre passa, lá por cima; o suave ruído provocado pelo seu voo parece-me sinistro, malévolo; felizmente, já não há nada a temer, esgotei o medo; e por isso não o olho, não me protejo. De qualquer modo, talvez nem seja um abutre. Não importa; até poderia ser um anjo: que se foda.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante e bem descrito. Gostei.
Só uma nota, a frase "Quando chegamos junto ao riacho, paramos" é suposto estar no pretérito perfeito, logo seria "Quando chegámos junto ao riacho, parámos". Senão será um "brasileirismo". Se está no presente, my mistake!;)

Anónimo disse...

Apeteceu-me passar de relance pelos blogs dos amigos só para deixar um abraço.
Fica bem
Pedro CL

Fábio disse...

Tanto tempo que demorei para aqui chegar...
Paulo, se este não é o melhor texto deste blog.. Parabens. Ainda não tinha percebido o quanto este projecto te faz bem.
E obrigado