Ao Sr. Raúl Malaquias Marques, por agora apenas quero dizer que, Alguns momentos antes, o meu dia, era infinitamente mais pobre.
Muito Obrigado, e um sentido abraço.
Até breve.
Querida Lúcia :
Conto-te agora um dos mais inacreditáveis episódios da minha vida:
Lembras-te de na carta anterior te ter dito que secava algas para que quando me falhasse o tabaco eventualmente ter com que o substituir? Conhecendo-me tu como me conheces sabias melhor que eu que, assim que as ditas estivessem secas correria a experimentá-Ias independentemente do estado das provisões de tabaco.. e assim fiz.. Como as tinha separado por cores assim que pude cortei em fitas estreitas um bocado de alga dourada, enrolei-a e sentei-me na proa, abastecido com um copo de gin tónico. A princípio o sabor áspero irritava-me um bocado a garganta, secava-me a boca e estive pronto a esmaga-lo com a ponta do sapato. Mas há quarta ou quinta inspiração o aroma adocicado e o leve travo marinho fizeram-me protelar a decisão. Entretanto satisfez-me perceber: que era suficientemente forte para saciar a minha necessidade nicotínica. Que melhorava a palatibilidade do meu gin. Continuei. A meio do cigarro senti uma breve tontura que depressa se converteu em descontracção. Recostei-me na cadeira e fechei os olhos. Apetecia-me música. Vieram-me à cabeça alguns versos:
"Come over here, babe\ it ain't that bad \ I don't claim to understand the troubles that you had
but the dogs you say they fed you to\ lay their muzzles in your lap \and the lions that they led you to lie down and take a nap\
because the ones you fear are wind and air\ and / love you without measure \ it seems we can be happy now, be It better late than never"
Cantava-os já, quando, de súbito, uma voz colérica irrompeu sobressaltando-me e emudecendo-me numa sucessão rápida. Dizia ele (que a voz era de homem):
-Desembainha a cimitarra verme Inglês, pois não saboreia o gume da minha aquele que não se defende.
Quando me consegui orientar encontrei um homem jovem empoleirado no mastro da "Lua': brandindo alto uma espada que reluzia à luz das estrelas. Foi talvez o medo que me fez recuperar o fôlego:
- Mas.. mas.. Inglês?? Eu não... Quem és tu?. O que fazes ai?.. mas.. não.. Como foste ai parar?- mal articulei eu.
-Atreves-te a negar quem és? Terás mesmo a ousadia de negar que me conheces? Acaso não te doem mais as cicatrizes dos espinhos que te infligi a ti e ao teu colega napolitano? Pois bem, se te fazes de parvo, meu verme, e para que não te trespasse e depois alguém diga que o fiz à socapa digo-te as coisas que melhor sabes na tua vida, não fosse o medo quem melhor acode à memória: Sou Cosimo Piovasco, Barão de Rondó, enamorado da Marquesa Viola, que deves ter cativa nos calabouços desta barcaça, pois se ela me falta, se lhe fizeste a mais doentia corte de que há relato e se o verme napolitano ainda dorme no porto de Ombrosa, então o teu rapto é mais evidente que o sol. Sobe e prepara-te para a refrega, pois sabes bem que não ando senão em árvores, e se aqui vim ter é porque este mastro também já foi uma, porque Viola é o que mais amo na vida, e porque a tua imunda embarcação teve a ousadia de rasar de tal forma o bosque que me bastou um salto para aqui vir ter. Sobe verme..
-Cosimo? Mas como! Não sou quem pensas, nem poderei estar eu a falar contigo. De facto conheço-te! Li-te num livro, és a personagem .. - dizia eu mais para mim que para quem quer que fosse.
-O que dizes rato infame! - gritou ele, vermelho de raiva, enquanto me acertava em cheio no nariz com uma espécie de bolota - que livro? Personagem?
Sentindo na pele que de livro aquela dor tinha muito pouco ignorei a verosimilhança e decidi entrar na conversa:
- Desculpa Cosimo! Tens razão. Despertaste-me do sono - disse resoluto - e não estava a perceber o que se passava. Sonhava com um livro e todo este sobressalto deu-me a volta á cabeça. De facto ouvi falar muito de ti. Mas não sou quem julgas. Venho de Portugal e viajo sem outra intenção que não seja a de esquecer-me de mim e encontrar-me renovado. Para perceberes que não sou quem pensas que sou vou aproximar-me desta lamparina para que me vejas o rosto - e assim fiz.
-Mas..- foi a vez dele se atrapalhar- então como?.. Passaste em Ombrosa e Olto Massimo ladrou-te como se te quisesse comer um bocado..
-Talvez por ter sido a primeira vez que me viu, talvez porque eu entoasse uma melodia que o irritasse.. Sabes, é que vinha a cantar!
-A cantar ou a dormir? - gritou de novo, agora com menos bílis - Decide-te que assim não me entendo?
-A cantar antes, até adormecer.. Acalma-te. - parei e senti que começava a dominar a situação. Como fosse o silêncio o meu novo adversário, e porque a conversa me começava a interessar, prossegui:
- Que se passa entre ti e Viola? Achas mesmo que alguém a raptou ou fugiu pelo próprio pé?
-Porque perguntas isso? - perguntou, visivelmente afectado..
-Não sei.. - atrapalhei-me -..mas conheço a tua fama.. conheço a tua teimosia e a tua forma de viver.. pensava para mim como seria Viola, como reagiria ela a tudo isso.. Não deve ser fácil acompanhar-te em cima das árvores..
-Bem.. ela é dura! Faz-me ciúmes e tenta chantagear-me para que eu volte a por o pé em terra, mesmo sabendo que não o farei! Ela quer sentir que a amo mais que ás minhas convicções, e por muito que a ame mais que a tudo queria que ela entendesse que as realidades não se excluem. Se quebro esta minha forma de vida, à volta da qual me erigi e construi, desabo. Deixo de existir assim que voltar a pisar o solo. Para que quer ela que eu a ame depois?
-E disseste-lhe o que me acabaste de dizer?
-Nunca! Também ela nunca me diz que me ama mais que a qualquer um daqueles a quem deixa fazer a corte debaixo do meu nariz. Confessar-lhe o que te disse seria perder.
-Perder o quê?
-Perder para ela, ora! - exclamou, de olhos arregalados.
-Não percebes que nada mais está em jogo senão a vossa felicidade? - disse eu apaixonado - que nada se joga senão cartas e malha?, que se ela é como tu e nenhum de vocés admite "perder" perderão os dois? Basta que um perceba. Diz-lhe o que me disseste.. muda o fim do livro.. digo.. da história..
-E tu? Que fazes aqui? - perguntou, atrapalhado, como quem quer mudar de assunto.
-A minha história acabou sem que ninguém me tivesse avisado antes para não ser como tu, e agora cá ando, em busca de uma ressurreição, perdido, à deriva sem saber onde, sem querer saber, e tudo o que faço é atirar palavras ao mar. Vai. Muda. Tenta ser feliz. Luta contigo..
-Levas-me a Ombrosa? - perguntou, em claro assentimento.
-Onde é?
-Já ali, nesta direcção - e apontou.
Olhei para onde apontava e não vi nada para além da negritude. Quando voltei a olhar para cima, procurando-o, não o encontrei. Ainda lhe gritei: "Chamo-me Sérgio': mas ele nem tinha perguntado.
Acreditas-me? Pensei muito nesta conversa depois de ela ter acontecido, e muito gostaria eu de me falar a Cosimo, mas não tenho mais algas douradas. Todos os dias as procuro no saco.
Apetece-me música.
Saudades. Tantas,
Sérgio
I
A dor da solidão rasga-me, avançando por mim adentro com o ímpeto de quem sabe ser invencível. E tudo o que posso fazer é caminhar por estas ruas e sentir a passagem do tempo, olhar e fantasiar, arrancar de dentro de mim mais um farrapo de esperança, crer, inventar fé, fingir ilusões; e esperar que me encontrem, que dêem por mim, que me chamem.
Há momentos mais difíceis; como agora.
Em que me sento neste pedaço de chão, fixo o olhar no vazio que me envolve e espero que esta árvore que se ergue junto a mim diga uma qualquer palavra, me dirija um momento de atenção; espero; e enquanto o faço, grito comigo próprio: as árvores não falam, palerma. Contudo: ignoro-me, sei perfeitamente que as árvores não falam; mas parece-me menos impossível esta árvore tossir um pouco para captar a minha atenção e, depois, perguntar-me o nome do que algum homem ou mulher perceber a minha presença e partilhar comigo a sua existência.
Deverá ser por acreditar, infantilmente, na possibilidade de estabelecer alguma espécie de comunicação que começo a falar-lhe.
Pergunto: nunca te sentes sozinha?
Espero alguns momentos, dando-lhe tempo; mas como sei que jamais me responderá, o seu silêncio não me fere, a sua indiferença não me magoa. Apenas a decepção magoa; mas as árvores são incapazes de decepcionar.
Pergunto: as árvores não têm nome, pois não? É que se tivesses nome, pelo menos terias essa companhia, estarias menos só.
Tento imaginar que nome poderia ter esta árvore; ou que tipo de nome teriam as árvores, caso precisassem de nome; mas, para que precisariam de nomes, no seu mundo de silêncio e quietude?
Digo: talvez as árvores sejam como os índios e tenham aqueles nomes estranhamente reais, estranhamente poéticos, estranhamente cruéis, como Urso Zangado ou Cavalo Veloz ou Doninha Mal Cheirosa ou Rato do Deserto ou Serpente Venenosa, nomes que caracterizam na perfeição o seu proprietário, estigmatizando a sua personalidade; percebes o que quero dizer? Tu poderias chamar-te Robustez ou Folhas Verdes ou Tronco Curvo e Vigoroso ou Aquela que Faz Sombra.
As folhas agitam-se ao sabor de uma vaga brisa: não como se fossem forçadas ao movimento pela força invisível do vento mas como se se agitassem por si, numa tentativa de captar uma carícia. Gostava de sentir o vento no rosto, o vento a agitar-me o cabelo; mas nem isso me é concedido.
Pergunto: gostas de ser árvore?
Escuto o silêncio, permito que se arraste, saboreio-o. A companhia do silêncio é preferível à companhia do nada.
Digo: houve alturas da minha vida em que teria gostado de ser árvore, em que teria apreciado uma existência contemplativa, ser apenas uma mancha dissimulada na paisagem; sim, houve muitos momentos em que desejei a passividade: teria sido bom, teria sido fácil.
O mundo passa por mim, por nós: agitado, frenético, compulsivo; deixamo-lo ir.
Digo: para nós, humanos, o maior drama existencial é a incapacidade de aceitar a morte, ou seja, de aceitar a perda da faculdade de sentir o mundo; e para as árvores? Imagino que será a impossibilidade do movimento, da mudança.
Agora, já não há brisa; e as folhas estão perfeitamente imóveis; como se me escutassem.
Digo: há uma estória que li algures, noutra vida, e de que gosto muito; conta o drama de uma árvore que durante toda a sua existência de décadas apenas teve o desejo de viajar; vivia amarrada à terra, que a suportava e alimentava, e sonhava com o dia em que essa mesma terra libertasse as suas raízes, sonhava com o dia em poderia passear pelo mundo, como os pássaros e como os coelhos e como os esquilos e como as formigas; e com tal intensidade desejou, que o sonho se concretizou: um dia, vieram homens com máquinas ruidosas e fumegantes, que a rodearam, que a olharam com cobiça, com despudor, com superioridade; primeiro, teve medo; e até sentiu um pouco de dor, quando as máquinas fumegantes e ruidosas penetraram a sua madeira; mas tudo se passou muito depressa: e logo deu por si arrastada por um tractor, empoleirada no dorso de um camião. E quando o camião se arrastou vagarosamente pela estrada sem fim, percebeu que o sonho se concretizava; viajava: florestas imensas, prados verdejantes e até o mar azul desfilaram perante si. E tão intenso foi o prazer que sentiu que nem por um momento compreendeu que estava a aproximar-se da sua morte, que o modo como fora arrancada da terra consistira num assassínio cruel e irremediável e não numa libertação. E mesmo que compreendesse, não se importaria; porque a concretização de um sonho vale mais que a vida.
Calo-me; por um momento, nada acontece; mas depois, as folhas da árvore agitam-se preguiçosamente, contorcem-se com suavidade. Poderá ser apenas o vento; ou não. Talvez não seja apenas o vento.
Pergunto: é uma estória bonita, não é?
Permito que o silêncio nos envolva, nos una.
Digo: penso que já encontrei o nome adequado para ti: Aquela que Sabe Escutar; que achas?
Há pessoas que passam: corpos com almas lá dentro; almas prisioneiras da carne, como as árvores são prisioneiras da terra. Mas é como se estivéssemos sozinhos, eu e Aquela que Sabe Escutar, como se o mundo fosse só nosso; sinto uma farrapo de intimidade; na verdade, sei que estou apenas a imaginar mas prefiro um farrapo de intimidade imaginado que nada.
Pergunto: como é que as árvores fazem amor?
E acrescento: pergunto-te isto porque o modo como as árvores fazem amor poderá ser semelhante ao modo como os anjos fazem amor. Percebes? É que se eu descobrisse como os anjos fazem amor, se me fosse concedido o privilégio de partilhar desse segredo, já não precisaria de corpo, poderia libertar-me da angústia da sua perda; poderia ser feliz. Um anjo feliz.
Aquela que Sabe Escutar não responde; é óbvio que não responde; mas o facto de ter verbalizado o meu mais íntimo sofrimento, o facto de o ter libertado, anestesia-me um pouco; e durante alguns instantes, não sinto dor; há apenas uma insinuação de paz que me invade, que me aconchega, que me serena.
Levanto-me e, com passos vagarosos, afasto-me; não me despeço porque sei que regressarei. Caminho; perguntando-me se não poderia partir pelo mundo em busca da companhia das árvores; falando-lhes e aprendendo a decifrar o seu silêncio; dando-lhes nomes, baptizando-as de acordo com a sua personalidade, de acordo com a sua disponibilidade. Sim, poderia fazê-lo: seria uma forma de estar menos só.
Abril de 2003
II
Partes, como tantos durante tanto tempo o fizeram. Mas a tua partida assinalo-a: Partes. Sinto, gradualmente, o teu afastamento. E isto é importante, porque por estranho que te pareça, não é à lentidão que estou habituada. Tudo o que se passa comigo é muito mais abrupto que aquilo que os teus sentidos podem perceber. É brusco. E talvez seja muita sorte a minha não estar familiarizada com a marcha lenta da solidão de que me falaste.
Deixo-te ir. Em silêncio. Um silêncio que se impõe, que para mim tem um significado que desconheces. Eu podia tê-lo quebrado, podia fazer estilhaçar palavras contra o chão que te sustenta. Mas só a mim o silêncio fugiria. Tu continuarias, plácido, envolto nele, achando-te palerma por esperares ouvir-me. Já o fiz várias vezes, no passado. Tanto quis ser ouvida que me apus violentamente à ausência de voz.
Prometes que regressarás a mim. És o primeiro que o faz. Não me importa que te esqueças, não me interessa que não voltes. Tantos já prometeram voltar: os apaixonados combinam amores, as crianças choram para voltar na tarde seguinte, os putos planeiam mais um jogo de berlinde, os dealers que querem um canto, os homens que querem uma cama, o ébrio que quer mijar, a puta que se quer despachar, o suicida que se quer enforcar. E todos voltam.
Mas vês: nenhum volta por mim. Até que chegaste, e me falaste, e me fizeste ouvir, e me pediste o que não te poderei dar, e aceitaste o que te dei, e agora vais, com a tua promessa. E repito-te: não esperarei por ti. Já me deste tanto.
O que te diria se me pudesse fazer ouvir?
Talvez que quando chegaste a tua presença me surgiu exactamente igual à de todo o vulgar humano, que não te distingo, que para mim se esbatem as diferenças de que me falas. À minha sensibilidade apresentas-te igual ao que querias ser.
Só porque me disseste percebi que eras um anjo.
Há uns bons 230 anos costumava vir para cá um homem, a quem eu ouvia os outros chamarem maluco. Vinha todos os dias mas só na penumbra da noite. Sentia-o subir-me para o braço mais alto, murmurando palavras imperceptíveis. No alto repetia-se o espectáculo: “Não sabeis quem sou? - gritava - Pois riam-se que vos arrependereis”.
Na última noite senti-o subir a meus braços e cair a meus pés. Seco, duro, depois húmido-quente-frio. Chovia e trovejava, pelo que ninguém senão eu ouviu as palavras que nunca hei de partilhar: “Sou um Anjo”. Foram as únicas três.
Ignorante sofri a morte do anjo durante o crepúsculo, bebi-lhe o sangue como faço, indiscriminadamente, a todos os corpos que se esvaziam perto de mim.
Só na manhã seguinte com a chegada sucessiva dos cães, das crianças, das mulheres e dos guardas reais fui percebendo a sua história: A do homem que se apaixonara por uma freira e tornou o sonho a sua realidade, e estendeu a mente até se sentir mais próximo dela, e do seu delírio fez felicidade contínua, e que no acto final voou e gritou e foi: anjo.
Como a minha irmã de que me falaste também ele se soube iludir e fugir ás dores, buscou o prazer na loucura, procurou a ignorância pela qual pediste.
Vês: Trocámos estórias.
Fui percebendo depois o que é um anjo, sem que nunca antes nenhum me tivesse visitado ou, pelo menos, se tivesse identificado. E confesso-me: pensei que se um dia um viesse, finalmente, poderia ser ouvida. Que para ele o meu pensamento fosse audível. Tantas foram as fábulas que ouvi a propósito da vossa casta, sobre a puerilidade da vossa intenção, a magnificência do vosso acto, a autoridade do vosso saber, que pensava: Nada lhes está interdito!
E achava: quão tétrica será a existência de quem existe para ser depósito de esperança, confidente do apodrecido, sabedor do desespero, mensageiro do devir?
Sinto-nos íntimos. O que para ti foi farrapo para mim foi laço. E compreendo-te, que eu, sem poder falar, ouvi e fui ouvida.
E sinto-nos semelhantes: dois espíritos colocados em contacto com os humanos, invejando-os - tu a carne, eu a voz.
Não lamento a imobilidade, é, aliás, uma coisa que não faz sentido para mim, como para uma abelha não fará o açúcar. Percebes: tenho mobilidade, a minha forma de mobilidade. A realidade é-me trazida pela longevidade, não preciso de sair do sítio para que as coisas me cheguem.
A árvore de que me falaste seria, provavelmente, nova, na idade em que é cedo para perceber e aceitar as limitações, para saber contorná-las, quando é impossível ser-se contido, quando se vive em paixão e pouco se sabe de amor -quando se pode morrer por um sonho.
Somos, os dois, anciãos desta superfície, sabemos já, que nem tudo se pode vencer. Sabemos os dois que as angústias não desaparecem. Mas hoje desenhaste-me boca e lábios, deste-me voz e beijaste-me, fizeste o teu milagre, usaste o teu poder demiúrgico, foste anjo para outro.
E aliviaste-me. Os prazeres dionisíacos que tão concretamente nos fogem serão por mim esquecidos. Até quando não sei.
Partes e eu refugio-me, calada, em mim. Digo “olá” ao dia em que me cruzei com um Anjo: Aquele que Soube Escutar-me.
Partes. Para sempre.
Fábio H. L Martins
Abril de 2003
(Clique para ler as partes III e IV)
Bela Lúcia,
tivesse eu competência e saberias melhor o quanto és bonita, o quanto os espelhos te mentem por reflectirem o teu olhar em vez dos teus olhos. Por reflectirem o teu estado de alma em vez da tua alma. Tivesse eu tido tomates para sair das esquinas para onde me esgueirei quando te aproximavas demais e saberias agora o quanto esta opinião é recente e não te remete para a firmeza dos 35.
Quando nos partimos em dois, e voltámos à condição de solitários, e ficámos órfãos da metade que um era do outro, e tentámos acreditar que existia vida à distância, e deixámos à solta os instintos que se atenuam nos amantes, e tentámos fazer dessas pequenas partículas a totalidade, e quisemos seguir como se não fossemos o mesmo; se te lembras, nessa altura, na minha mesinha de cabeceira dormia o Dom Quixote (não o verdadeiro, mas o de Cervantes).
Não sabes mas digo-te, que naquele dia amaldiçoei todos os objectos, todos os cheiros, todos os sons, todos os fragmentos de memória que enchiam o quarto. Porque amaldiçoar-me não chegou, porque amaldiçoar-me foi fácil e inconsequente. Finalmente detive-me a olhar: aquele anfiteatro enorme (tão cheio contigo dentro), aquela luz de fim de manhã a entrar, sorrateira, entre as frestas das cortinas mal postas, o último copo duplamente tingido – em cima pelos teus lábios, em baixo, pelo néctar rubro que incendiou o nosso corpo antes do fogo deflagrar. Fechei a porta com um estrondo, tranquei-a e atirei a chave ao rio. Atirei-a do miradouro da Graça. Quer a minha memória dizer-me que chegou ao rio e lá se aninhou. Afundou-se. Passei a dormir na sala. Só umas semanas antes de partir para aqui arrombei a porta. O teu perfume ainda lá está, como o batôn, como a luz. O livro resgatei-o e trouxe-o comigo.
Há uns dias decidi começar a lê-lo. Quando o abri caiu-me uma folha amarela nos pés – e juro-te, magoou-me. Sei-o porque gritei. Desdobrei-a e li as palavras que me recolocaram no dia em que, corajosa, te despediste de mim, dizendo-me, por bilhete:
“Não está mais nas tuas mão fazeres de mim uma alma feliz. Corrijo, não está nas tuas mãos contribuir para a felicidade que, instintivamente, procuro. Tentarei eu ter um vislumbre no meio da tempestade que, seguramente, se abaterá. Despeço-me com o amor. Todas as suas três partes: A que me é despertada pelo olhar que, mais uma vez, sobre ti poiso. A outra, que é memorial, tão histórica e tão impossível de apagar como uma nódoa que fez buraco. Finalmente, porventura a maior parte; a de todo o amor que te quero dar e esbarra nesse teu...não sei. Em ti.”
O papel senti-o de manhã. Crepitante debaixo da tua almofada doce e naturalmente perfumada com a tua saliva. Estava já fria.
Li-o. Depois das emoções previsíveis perdi-me em admiração pela tua coragem. Pela forma como optaste – e sei que pensaste bem –pelo bilhete. Evitaste o olhar, evitaste as palavras, evitaste sucumbir. Como sei que querias. Sucumbir, voltar, abraçar, beijar, foder. Esquecer. Acima de tudo esquecer.
Comecei, talvez desde aí, a amar-te mais.
E sim, eram estas as surpresas de que te falei na última carta, eram as tuas palavras e as reacções que nunca pudeste saber.
Como passei sem ti? Imagino, porque te conheço, que nunca te terás questionado acerca disto. Não te deixei qualquer margem para que te pudesses agarrar à convicção de que me farias falta.
Não passei. Tanto quanto te posso escrever e explicar não passei sem ti. O fulgor do meu amor por ti chegou depois desse dia. Foi chegando. E por me ser insuportável a tua ausência, não te deixei partir. Mantive-te comigo. Mantive-me contigo. Mantive-te nos corpos de todas as que me receberam. Dei a todas o teu perfume, ofereci a todas os teus livros preferidos. Mas nunca as olhei, nunca lhes toquei, nunca as beijei, sem estar perfeitamente seguro de que uma centelha de ti lá estaria, acesa, à espera que eu a encontrasse: numa mão, num cabelo, numas unhas, num reflexo, numa frase, num gemido, num suspiro, num espirro.
Não foi longe o meu delírio, a minha desapiedada estratégia devorou-me depressa, mais depressa que àquelas que se deixavam enganar: sabiam-se enganadas. Queriam-se enganadas.
Percebi que me concedia a decadente facilidade de ceder à dor, fechar os olhos e prosseguir – egoísta e sôfrego – neste consumo de vontades, nesta fogueira de ilusões em que se queimavam: ideais, sonhos, felicidades, memórias, segundos. Tantos segundos.
Acautelei-me antes de me esvaziar por completo à medida que me enchia de vícios (não te interessa saber quais. Imagina todos). Parei.
Estava fraco, ainda não era a altura: Mantive-te comigo. Mantive-me contigo. Outro plano barato que comprei à ausência de capacidade de raciocínio: percorri os nossos caminhos, vi os nossos filmes, e percorri e vi aqueles que sempre me disseste para ver e percorrer ,mas que, por este ou aquele motivo, ainda desconhecia. Ouvi a tua música. Como criança li as nossas cartas adolescentes. E foi bom, até que a impessoalidade passou a constituir um preço muito caro neste plano. Percebi que te estava a manter à custa de uma alteração grosseira daquilo que eras para mim. Parei.
Pensei.
Só te seria fiel se nada fizesse para te manter comigo (me manter contigo). Aturadamente, passei a nada fazer. E encontrei-me. Deixei de ser a criança no mundo dos grandes. (Ou cresci ou o mundo passou a ser dos pequenos).
Sim leste bem, percebeste melhor: fui voyeur. Mas foi tarde. Melhor, foi tarde que passei a espreitar-te, deliberadamente, nas esquinas. Foi depois de muitas vezes te ver, por acaso, à distância. e fugir. E assustei-me. Porque dissolvida na tua beleza encontrei uma palidez, uma sombra, um abismo aberto no olhar. E, não estivesse a chover, juraria, no último dia, ter visto duas lágrimas escorrer. Espessas.
Pela primeira vez em muito tempo agi impetuosamente, saí da esquina, enrolei depressa o jornal que me camuflava, e lancei-me a ti. Estávamos a escassos três metros quando uns braços que não eram meus te enlaçaram. Depois outros. Desviei-me o melhor que pude mas ainda chocámos. Estavas tão abraçada que nem notaste. Mas houve um momento mágico. Aquele em que as nossas mãos se tocaram, e a minha pele pode de novo tocar a mesma, e em que pude sentir a tua maciez, ou imaginá-la, ou imaginar tudo. Cheguei à esquina mais próxima, desenrolei o jornal e olhei-vos. Uma adolescente e um adulto. Podiam ser a tua família, podiam ser tudo, mas nada senão a família me ocorria à mente. Mas então que te fazia chorar? O médico, o cão, os amigos. Percebi que estava só no início de um novelo interminável de possibilidades. Saí do palco decidido a tentar não concluir nada. Estavas abraçada, tinha-te visto e tocado. Tocado.
Não te surpreenderia saberes agora que há pouco tempo nos tocámos? Tu que nem sequer me voltaste a ver?
A vida na “Lua” continua nova. Agora vou pescar! Talvez te conte numa outra carta. Amo-te.
Sérgio
Fábio H.L. Martins, Alinhavar 26 de Fevereiro de 2003