segunda-feira, julho 31, 2006

"Pequena Fábula", por Franz Kafka


(Amanhecer em Linda-a-Velha, por A.P)


"Ai de mim", disse o rato. "O mundo está a ficar cada dia mais pequeno. Ao princípio era tão grande que eu tinha medo, estava sempre a correr, a correr, e fiquei contente quando finalmente vi paredes lá ao longe, à esquerda e à direita, mas estas longas paredes estreitaram-se tão depressa que eu agora já estou no último compartimento e ali no canto está a ratoeira para a qual sou obrigado a correr." "Só precisas de mudar de direcção", disse o gato, que logo o engoliu.

Franz Kafka em Contos.

sexta-feira, julho 28, 2006

Para ti








You are my angel
Come from way above
To bring me love

Her eyes
She's on the dark side
Neutralize
Every man in sight

To love you, love you, love you ...

You are my angel
Come from way above

To love you, love you, love you ...

Massive Attack



Para ti, sabes bem quem, simples e emocionado OBRIGADO. Amo-te

Sued


“Sued”

Foi a 24 de Abril de 1786 que Frederico Eleutério Carrilho nasceu pela primeira vez. Os seus quase cento e cinquenta gramas distribuídos em ovais e homogéneos 4cm2 deixaram felizes e menos ansiosos os seus pais.

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Maria Velasques Carrilho teria aproximadamente sessenta anos e foi com um inexperiente nervosismo que recebeu, há 16 dias atrás, a notícia da sua primeira gravidez. Aliás, a sonolência e a polifagia foram de facto os primeiros a alertá-la para a eventualidade de vir a ser mãe.

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Carlos Mariano Eleutério teria aproximadamente quarenta anos, e como tal foi com maior tranquilidade que recebeu a confirmação da notícia pelo Dr. Frederico Branco e Castro. Às suas maiores experiência de vida e frescura física Carlos juntava ainda a sabedoria de quem já ajudara e acompanhara dois filhos nascidos da sua relação anterior.

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Foi há aproximadamente cinco anos atrás que Carlos e Maria se conheceram nas sessões de esclarecimento.

Carlos, produtor de cinema, frequentava agora as mesas redondas e os debates sobre novas tecnologias da imagem, exactamente as mesmas que Maria, que, mais nova, tinha por ambição trabalhar directamente no desenvolvimento da televisão interactiva.

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Três meses depois, no jardim, ela pediu-o em casamento. Ele, marcado já pelas cicatrizes de uma relação dolorosa, não hesitou: Casaram.

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Foi a 20 de Dezembro de 1786 que Frederico Eleutério Carrilho nasceu pela segunda vez. E foi com infantil felicidade que os seus pais o foram esperar ao H.I.C.

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Na sala de espera do Hospital Incubador Central estavam de pétalas ao regaço, talvez umas dez famílias, em número difícil de ser confirmado pela previsível confusão entre irmãos e pais.

Carlos, de cabelo já a cobrir-lhe significativamente os frontais e um pouco escurecido, trazia os seus calções de golf preferidos, o seu polo amarelo citrino e os seus sapatos de bowling mais que coçados.

Maria, ainda na força da brancura que lhe pintava o longo cabelo, trazia o seu vestido comprido, castanho com florzinhas brancas – dir-se-iam azáleas, dir-se-iam malmequeres, dir-se-ão florzinhas brancas – e nos pés as suas sandálias novas, compradas nas últimas férias na praia.

A ansiedade fugira-lhes do rosto precocemente durante estes oito meses. O primeiro batalhão de análises e os devidos exames imagiológicos revelaram-lhes a única coisa que queriam ouvir: Frederico era viável. E oito eram os meses para pensar a sua chegada, 240 os doces dias para planearem as primeiras horas, 5760 as horas restantes para aproveitar a vida de jovem casal sem filhos.

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Tal como tinha sido previsto, pontualmente às 9h.45m Frederico Eleutério Carrilho foi despertado para a vida. Suavemente as suas pálpebras afastaram-se descobrindo o branco dos seus dois olhos pequenos e incrédulos; primeiro lestos, depois fixos – na enfermeira – na sua cara – nos seus olhos – no infinito.

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Depois, só depois, a boca:

“ – Ahhggahhiiahh” – balbuciou admirando-se ao perceber que o ar que lhe saía da boca, junto aos ouvidos, provocava-lhe uma perceptível vibração – o som!

Depois, finalmente, tomou consciência do seu pensamento, e confortado pelo terno sorriso da enfermeira, conseguiu dominar a sua voz, e perguntar:

“ – Onde estou?”

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Impetuosamente e sem conseguir deter uma furtiva lágrima Carlos correu para ele quando sentiu passos no corredor. Com as mãos cheias de pétalas de Magnólia arrancadas à pressa ao regaço de Maria, chegou perto dele. Descoordenado, descontrolado, sem conseguir calar a emoção que lhe fazia tremer as pernas, abraçou-o com força. Passou-lhe as Magnólias pelo nariz e deu-lhas nas mãos.

“ Sou eu Frederico, o teu pai, e aquela que não se consegue aproximar e está no fundo do corredor é a mamã.”

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Maria, toldada pela emoção, quase cambaleava na outra extremidade do estreito corredor. Os olhos marejados só percebiam duas silhuetas, primeiro de mãos nas mãos, depois de braços nos braços.

Deixou-se estar porque sabia que eles se aproximariam. Deixou-se estar preferindo acalmar-se e pôr-se bonita para Frederico.

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A cerca de vinte metros (que eram os que separavam Maria de seu filho) ele tinha o brilho e a beleza triunfante comum aos recém-nascidos. Talvez 1,65m, mas com uma curvatura dorsal que deixava antever o quão alto seria enquanto adulto. O seu cabelo, muito escasso e naturalmente de maior implantação à periferia, era branquíssimo, de tal forma que brilhava, resplandecente. O resto, os pormenores, esses não se revelavam ainda a esta distância. Não a uns olhos tão congestionados como os de Maria.

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A distância encurtou-se de tal forma que cerca de cinco minutos depois já a família caminhava sob o fresco sol de Dezembro, atravessando o jardim e buscando a casa. A emoção mantida transformara-se em boa disposição, sobretudo quando Maria, como mãe inexperiente, se esquecia das leis mais básicas da vida e da hereditariedade neonatal, e, no entusiasmo da conversa deixava Frederico perplexo com conceitos como “casa”, “televisão”, “jantar” ou “comemorar”:

- Então, meu lindo, vamos para casa jantar qualquer coisa, depois pegamos no carro e vamos a um bar com alguns amigos para comemorar.

Frederico atónito, olhava espantado, com as pálpebras expondo ao máximo o interior das suas órbitas.

Então Carlos, depois de conter o riso lá dizia:

- Amorzinho, não vez que o menino acabou de nascer? Não te esqueças que por enquanto a capacidade verbal dele se limita ao mais simples, ao estritamente ligado à sua esfera individual. Isso que lhe disseste soou-lhe provavelmente a estrangeiro, ou pior, deve tê-lo preocupado a tua sanidade mental. Tenta assim, - e dirigindo-se a Frederico:

- Filho, andamos até um sítio que é nosso, que te daremos a conhecer e se chama casa, aí comemos qualquer coisa e depois vamos mostrar-te lugares bonitos aqui perto.

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Três luas cheias depois já Frederico conseguia perceber perfeitamente todo o encanto que os seus pais sentiam a olhar o céu. Já sabia que a bola grande iluminada era a Lua e que as pequenas que só apareciam a adivinhar dias quentes se chamavam estrelas. Já entendera agora que não era a mesma Lua que aquecia e azulava esses dias quentes, mas sim uma outra. O que ainda não conseguia lembrar-se sempre é que essa outra lua tinha outro nome. Como é que era mesmo? Pois, era isso, o Sol.

O que mais gostava ao ver as estrelas e ao adivinhar o Sol das horas seguintes era prever a animação que isso traria ás pessoas lá de casa. O papá de calções e a mamã com o vestidinho às flores. Exactamente como no dia do despertar. A ele, na verdade incomodava-o um bocado o calor. As suas pernas magras não lhe permitiam correr atrás do pai, e a sua bengala castanha não era suficientemente rápida a encontrar-lhe as sombras. Além do mais a chegada dessa segunda lua quente roubava-lhe a luz da lua da noite, e com ela as estrelas. Agora que os seus olhos conseguiam trazer mais e mais pormenores ás coisas a redescoberta delas era um dos seus maiores prazeres. Ao contrário da maioria Frederico era da noite. Da noite e da chuva, quando para sair de casa levava duas companheiras bengalas. A do chão e na mão esquerda aquela que abria em flor. Como é que ela se chama? Pois. É isso, o guarda-chuva.

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Os dias separavam as noites. A pele de Frederico todos os dias mais esticada. A face do pai cada vez menos áspera de beijar. O cabelo da mãe todas as manhãs mais dourado. Todos todos os dias mais bonitos.

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- “Mamã, quando tu e o papá saem de manhã onde é que vão? Vão ter com os vossos papás? Gostava de ir um dia.

- Carlos, querido, chega aqui num instante para falarmos com o menino.”

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- “Então é assim miúdo, quando nós saímos de manhã – começou um deles – o que vamos fazer é estudar e trabalhar, que é a forma que temos de estar activos. Temos os nossos projectos e vamos de manhã procurar aproximar-nos do que queremos fazer. Também é dessa forma que conseguimos ter todas as coisas que vês e ás quais chamas nossas.

- Estávamos à espera que a tua curiosidade e a companhia dos nossos vizinhos te depertasse a curiosidade em relação ao resto da nossa família – continuou o outro - . Queríamos mesmo que fosses tu a quereres conhecê-los para desde essa altura a união entre vocês ficar mais forte. Ao que parece essa altura chegou e para nós, como para eles e como para ti isso constitui uma grande felicidade.

- Eu não estou com os meus pais à muito tempo, talvez mesmo umas 120 noites – disse Carlos - . Eles estão com o meu irmão que é teu tio, e os filhos deles, que são teus primos. Já nasceram há noites incontáveis, mais que os pais da mamã. São os teus avós.

- O que é que achas de organizarmos um jantar daqui a umas luas para conheceres o resto da tua família? – perguntou Maria.

- Podem ser duas luas, uma quente e uma fria? – retorquiu Frederico.

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Na lua cheia seguinte, ainda a lua quente não ameaçava esconder-se já Frederico voltava do jardim para casa mal pousando o pé da bengala no chão. Tomou banho e esticou certinhos os seus raros fios de cabelo. Já vestido sentou-se e deitou-se na cama inquieto e mandando o tal Sol embora.

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O laranja da despedida da longa lua quente (sem dúvida a face mais bonita da sua visibilidade) tirou-o do quarto.

Primeiro chegaram os pais, recebidos com uma rapidez e indiferença que os fez sorrir.

Frederico continuava a repetir mecânica e rapidamente:

“Avó Paula, Avô Pedro, Avó Cláudia, Avô Miguel, Tio José, Tia Sónia, Tio Vítor, Tia Joana, Tio Nuno, Tia Helena, Tio Paulo, Primos José, Manuel e Sandro e Prima Catarina.

Avó Paula, Avô Pedro, Avó Cláudia, Avô Miguel, Tio José, Tia Sónia, Tio Vítor, Tia Joana, Tio Nuno, Tia Helena, Tio Paulo, Primos José, Manuel e Sandro e Prima Catarina.

Avó Paula, Avô Pedro, Avó Cláudia, Avô Miguel, Tio José, Tia Sónia, Tio Vítor, Tia Joana, Tio Nuno, Tia Helena, Tio Paulo, Primos José, Manuel e Sandro e Prima Catarina.”

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Primeiro chegou a família de Carlos, o tio com o avô ao colo, a tia com a avó e os três primos, já com o cabelo a escurecer e sem usarem a bengala a compor a marcha.

Frederico comoveu-se muito. Agarrou nervoso os Avós, dos seus lábios beijos, dos deles sorrisos. Eram dois avós que já não conseguiam falar e que já encerravam em si grande grau de ingenuidade e pureza. Assustou-se quando lhes pegou até lhe explicarem o que eram fraldas.

Chegou depois a família de Maria. Os dois irmãos e a prima Catarina. À frente saídos a correr do carro, os outros Avós, alegres, já com alguns dentitos a menos, não pararam de brincar com o neto, saltando-lhe um e outro para cima o que inevitavelmente lhe magoava as débeis pernas.

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O Jantar foi animado, com Frederico ávido e a tentar compreender muito do que lhe era inacessível.

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No jardim e iluminados parcialmente pela luz da lua boa os cinco primos reuniram-se deixando o resto da família em alegre cavaqueira saudosista, saboreando aqueles líquidos amarelos azuis e verdes que Frederico continuava a achar horríveis. Toda a família excepto os avós, já nos braços de um sono profundo.

A intimidade daquela reunião depressa foi conseguida dada a tranquilidade e a alegria que todos experimentavam. À socapa Manuel lá consumia uma daquelas coisas fumegantes que os papás tinham por hábito pôr à boca depois das refeições. Com os olhos rubros pelo fumo que cada aspiração lhe levava aos olhos Manuel começou enigmaticamente a rir às gargalhadas.

- Então pá, ouvi dizer que ainda é a tua mãe quem te segura a pilinha para ires à casa de banho?

- E porque é que não havia de ser? – respondeu ingénuo e surpreendido Frederico.

A gargalhada geral foi inevitável, apenas não extensível ao espantado anfitrião e á corada Catarina. Manuel, percebendo o rubor da prima cedo abandonou a conversa.

Ficaram por uns momentos a olhar as estrelas cada um tentando arranjar uma conversa que não durava mais de duas frases. Frederico bebia todos os pormenores de um convívio até aqui inusitado para ele. Sentia-se um príncipe em dia de aniversário e aos primos notava a delicadeza de reis que ali estavam para o fazer feliz. Era o seu dia e nada o poderia fazer estar menos que eufórico.

Sandro, o mais crescido deles todos, levantando-se e dirigindo-se ao salgueiro do jardim encheu o peito de ar e sobranceiro e gesticulante murmurou a meia voz:

- Vocês já ouviram falar de universos paralelos?

O silêncio de todos mostrou-lhe respostas completamente diferentes. Os olhos de Frederico mostravam uma curiosidade infantil indesmentível, completamente contrastante com a compenetração dos outros três, em todos reveladora de pouca vontade de aprofundar o assunto.

- Tretas – tentou ainda José, mas em vão, porque Sandro já não o ouviu.

- Sabes Frederico, diz-se por aí e faz todo o sentido, que não estamos sozinhos no universo. Que como aquelas luas e estrelas que tu vês existem milhões de outras. Isto não é nada, mas há quem diga que algures nesse céu aberto que os nossos olhos não atingem existe vida, semelhante à nossa mas com diferenças bastante perversas. Diz-se que num desses astros existe uma espécie em tudo igual à nossa mas com o ciclo de vida invertido – é o nosso universo paralelo.

Diz-se que eles nascem parecidos aos nossos avós agora e depois vão crescendo no sentido inverso ao nosso, acabando os seus dias em formas muito semelhante à nossa de agora. Nascem com a pele imaculada e vêem-na a deteriorar-se progressivamente. Nascem com o cabelo escuro e vêem-no enfraquecer e descolorar com os dias. Ao contrário de nós que somos cada dia mais bonitos eles vão enfraquecendo e definhando, com a agravante que a sua consciência mantêm-se quase invariavelmente até à altura da própria morte. Vivem a inconsciência da infância no princípio da vida, onde pouco útil lhes é e não lhes permite, como a nós, esquecer o estigma da morte. Na sua vida acabam por carregar a ideia que vão acumulando pecados, vivendo muitos deles ancorados à ideia de em vida se redimirem deles, esperando que algum louvor lhes seja concedido depois. A sua decadência física prostra-se-lhes perante os olhos, implacável e inexoravelmente. Como se isso não bastasse ainda contam o tempo, em várias unidades estranhas de forma a que sabem os dias exactos que cada um deles já viveu, e fazendo estimativas para quantos lhes restam viver. Bem afortunados aqueles que morrem inconscientes, digo-vos eu, ou o grupo mais restrito daqueles que consegue nesta espiral crescente de consciência e degradação, realizar em vida todos os seus sonhos e projectos. Contam também que alguns não aguentam a pressão. MATAM-SE, ou como eles lá dizem: suicidam-se, um acto que os outros classificam de covarde. Os filhos assistem à decadência dos pais lenta mas inevitável, e pior, as sociedades deste universo acabam por desconsiderar estes ditos mais velhos por estes não conseguirem manter um nível de trabalho físico que considerem aceitável.

Diz-se por cá que aquilo é obra de uma entidade tresloucada qualquer vingativa e cruel para com a sua criação. Eu não acho. Acho que provavelmente há um Sued pai e professor de todos os Sueds e que enviou para aquele recanto do universo (e só pode ter sido por engano) o pior dos seus alunos...

- Chega! Chega, gritou colérico Frederico. Não precisava nada de ouvir essas histórias mentirosas. Não me enganas. Como é que alguém pode saber essas coisas.

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Todos se despediram alegres e algo embriagados, reservando os melhores ditos para o mais recente membro da família.

Frederico passou a noite em branco.

Fábio H.L. Martins, Abril de 2001

quinta-feira, julho 27, 2006

Manobras de Sedução


Manobras de sedução


Apreciação a "E Nunca Mais Ninguém" de Raúl Malaquias Marques (& ETC)


Os livros seduzem-me (nos): porque particularidades do seu "embrulho" nos cativam, porque alguém que nos seduziu no-lo entrega previamente seduzido, porque foram escritos por alguém que há muito nos seduziu ou tão só porque sim. Porque da sedução fazem parte mistérios insondáveis.

Este foi-me praticamente "imposto". Foi­-me dito: lê-o. E foi-me dado um argumento quase irresistivel. Mas agora pergunto: e se me cruzasse com ele por ai, inadvertidamente? A sedução seria iniciada, provavelmente, pela pintura da capa (Magritte já me fez encontrar algumas preciosidades), e continuar-se-ia pelo primeiro grande mérito do autor: o título curto, incisivo, interminável e quase poético.

O argumento que me foi dado e que me acendeu irreprimivelmente a curiosidade foi o facto de se tratar de um escritor nascido na Praia da Vieira. E se a celebridade e o reconhecimento poucas vezes encontram talento e mérito, a estranheza resulta apenas do desconhe­cimento existente precisamente na sua (e minha) terra natal. Confesso-me: nunca tinha ouvido falar.

Mas a estranheza acentua-se, porque o livro é, de facto, muito interessante. Uma colecção de onze estórias, algumas das quais perpassadas pelo espirito do pós guerra, sob a forma de fantasmas que não se apagam e de uma espécie de devaneio mental que surge.

Não se pense, contudo, que é um livro de guerra. A forma como é tratado o assunto poucas vezes é a óbvia, e o óbice da previsibilidade é ultrapassado com segurança e sem esforço: com naturalidade. Se não for indução (e ninguém poderá ter menos segurança que eu ao afirmá-lo) encontramos subtis referências ao mar comum, respiramos suaves golfadas de ar impregnado pelo pinhal de D.Dinis e decalcamos personagens que sem esforço imaginamos percorrerem as pequenas ruas tão familiares.

A voz de Malaquias Marques tem uma personalidade muito própria, desafiando constantemente a nossa atenção, saltando de espaço físico e psicológico com grande facilidade, entrecortando assuntos como quem tece uma teia que nos enovela lentamente e da qual não queremos sair.

Apetece perguntar: Como passou despercebido até agora? Aqui. Logo aqui.

Fábio H. L. Martins, em Cadernos do Alinhavar

quarta-feira, julho 26, 2006

Abattoir blues



The sun is high up in the sky and I'm in my car
Drifting down into the abattoir
Do you see what I see, dear?

The air grows heavy. I listen to your breath
Entwined together in this culture of death
Do you see what I see, dear?

Slide on over here, let me give you a squeeze
To avert this unholy evolutionary trajectory
Can you hear what I hear, babe?
Does it make you feel afraid?

Everything's dissolving, babe, according to plan
The sky is on fire, the dead are heaped across the land
I went to bed last night and my
moral code got jammed
I woke up this morning with a Frappucino in my hand

I kissed you once. I kissed you again
My heart it tumbled like the stock exchange
Do you feel what I feel, dear?

Mass extinction, darling, hypocrisy
These things are not good for me
Do you see what I see, dear?

The line the God throws down to you and me
Makes a pleasing geometry
Shall we leave this place now, dear?
Is there someway out of here?

I wake with the sparrows and I hurry off to work
The need for validation, babe, gone completely
berserk
I wanted to be your Superman but I turned out such a
jerk
I got the abattoir blues
I got the abattoir blues
I got the abattoir blues
Right down to my shoes

Nick Cave



Arrepiante, dilacerante... A música, o poema....

terça-feira, julho 25, 2006

3ª carta do Alinhavar


(24/2/2006, Tejo)



Lúcia,

Navegava calmo. Antes, deslizava. Por águas ignotas. Tão líquidas que todas. Mais azuis que tantas. Deitado de costas, despreocupado.

Era um dos primeiros dias do meu novo mundo.

Lembro-me de pensar: ”deve ser esta a sensação de nascer”. Lembro-me de pensar: “ Freuds, Piagets, Kierkegaards, Pessoas e pessoas. Ids, egos, superegos, repressões e adaptações. Bufos, policias, detectives, promotores, advogados e juizes. Quem me explica?, quem se responsabiliza?, quem acusa e prende? Quem perpetuou o roubo da memória? Quem nos abduziu a capacidade de recordar?”

Parei de pensar quando, ao alcance do meu olhar, se prostrou uma silhueta humana. À surpresa de não me sentir surpreendido a minha mente retorquiu com a condição neo-néscia da minha nova vida. Afinal era eu que, de novo, me via. Ensimesmado e embrulhado, com e nos meus pensamentos, tinha-me debruçado na ré do barco.

A todos os nossos actos assiste uma lógica. Se nesta premissa quisermos acreditar. Ou não. Formulei que era porque perseguia a memória, a retaguarda da minha vida, se quiseres (como eu quero), a vanguarda da minha vida anterior, que, irreflectidamente, me tinha dirigido à retaguarda da “Lua”. Se questionava os horizontes perdidos da minha história, fazia algum sentido que ocupasse o espaço físico disponível mais próximo dela. Formulei que, se alguma vez chegasse a fazer planos nesta nova vida, ainda embrionária, talvez me encontrasse, depois de reflectido, na proa do meu barco. Acima de tudo se o fizer assim: calmo, despreocupado, deitado de costas, de olhos muito abertos (como se existisse uma parte metafísica de nós, a tal “alma”, que, nas alturas de maior introspecção precisa de espreitar cá/lá para fora). Parece-me que só mais tarde saberei.

E se navego (porque não sei) em círculos? Onde se localiza, fisicamente, o meu passado?, em Portugal?, em Lisboa?, em ti?. No meu pai?

Perco-me.

Como te contava, estava eu, de súbito, de cotovelos perdidos, de pernas não sei onde, mas de olhos fitos. Nos meus. De cima via-me fragmentado: pela angulação da água, pela refractância da luz. Não me inibi de pensar na desintegração como o melhor reflexo de mim. Encontrei o mais fiel dos espelhos. O meu “eu”, feito de peças inconjugáveis, soube-me doce, trouxe-me a perdida sensação de família. (Cheirou-me ao doce de tomate da minha mãe, senti a canela no ar).

De baixo vi-me uno, inteiriço, completo, levemente assustado, de testa franzida.

De baixo para cima parecia olhar o passado.

De cima para baixo encarava o presente. Gritante. Sedutor. Potente. Em baixo estava, pois, vítrea, fluída, quase transparente: a mão estendida do futuro. E acenava.

Mergulhei convicto e também vestido. Aprofundei o mergulho no futuro até a negritude não me deixar perceber o passo seguinte. Até aí, na minha descida, percebi um futuro lento, calmo, em “câmara-lenta”, plácido, amplo. Coincidindo com o fim das luzes de amanhã a reserva de ar acabou-se-me no preto. Célere, emergi. Expirei forte, como bom mamífero. Senti a fiabilidade da minha viagem “profética” esculpida na perfeição da premonição da minha morte: deixei de ver quando se acabou o ar = morrerei quando deixar de respirar. Tomei por garantidas todas as indicações percebidas até a luz falhar. Senti-me vencedor. Triunfante. Ri alto, gargalhei, provavelmente até os peixes ouvirem. Enchi a boca de água e expirei-a, melhor que bom cetáceo.

Continuei fresco no lar do meu vizinho mar, pensei em como era hospitaleiro o grande reino de Poseidon, que junto aos homens, por cima da areia, desenrola, incansavelmente, tapetes brancos, num convite irresistível, numa dança hipnótica. Submergi nele como quem o beija, e só tarde me lembrei que não ancorara a minha casa.

Já mal a via. A “Lua” em fuga, como quando somos pequenos e a perseguimos, de bicicleta, irritados com a sua infatigabilidade.

Comecei a despedir-me: dela, de ti, da aventura, da liberdade, da conquista. Contrariado despedi-me também da calma. Crente pedi por um vento que me favorecesse. Como não acontecesse, mais crente, nadei. Furioso, desesperado. Não me cansei. Fui levantando a cabeça para medir a aproximação. Não cedi ao insucesso.

Esfreguei os olhos quando me senti aproximar. Redobrei o esforço. Voltei a olhar: estava perto. Não pensei de facto – sorte, milagre, fenómeno, ilusão – continuei e continuei. E por uma vez, consegui: vencer, sentir-me invadido pelas ondas de prazer da recompensa pelo meu esforço.

Confirmou-se a hipótese mais plausível. Foi sorte. Muita. O flanco direito do barco estava parcialmente desfeito pelo embate num rochedo sujo. Substitui a felicidade pelo medo. “Agora afundas-te.” Subi ao convés e roubei um cigarro. Voltei ao rochedo. Dois metros quadrados. Passou-me pela cabeça trazer algumas coisas para o meu novo lar. Fumei e deixei-me vencer pela molenguice do sol e do cansaço. Acordei às escuras. Pequenas estrelas no tecto esforçavam-se por me dar visibilidade. Demorei a perceber que o barco estava, ainda, à minha frente. Na mesma posição. Ligeiramente inclinado para mim, como quem me convidava. Teriam passado, seguramente umas 5 ou 6 horas. Doíam-me as costas. E a cabeça. Subi e liguei as luzes. O meu companheiro não dava sinais de qualquer fraqueza. Afinal talvez não estivesse moribundo. Também ele parecia capaz de resistir a uma amputação.

Sem perceber nada muito bem decidi ligar os motores. Zarpei. Peguei no leme toda a noite, e pela primeira vez senti-me capitão. Senhor do meu caminho. Por muito que não fizesse a mínima ideia de onde estava. Mas optei toda a noite. Direita, esquerda, 60 ou 90 graus, depressa ou devagar. E não pensei em nada senão em seguir, em cansar-me, como se em mim ainda estivesse aceso o medo de me afundar, mais légua menos légua.

O sol nasceu obliquo. Atribui-o ao sono. Mas depois percebi. Percebi que a inclinação vinha da "Lua", que era o resultado da água que se acumulava no lado direito. Percebi que não iria afundar mas que permaneceria inclinado, e que o horizonte jamais se me afiguraria horizontal. Diverti-me por pensar que acabara de descobrir o “obliquonte” e reflecti sobre o facto de esta ser a primeira restrição que sofria na liberdade que procurava. Mais tarde ou mais cedo, por muito ténues que sejam os nossos actos, as condições começam a impor-se, resultando em fundamentalismo bacoco a não aceitação do facto. Sorri. Não quero a inconsequência. É entediante.

Com a lenta vaporização do orvalho salgado da noite voltei à minha melhor forma, prossegui, paralelamente, nas viagens à minha mente. E voltei às recordações. Renovo a convicção de que a perda da memória é injusta. Este renascer que tão bem me sabe é incomparavelmente distante da insalubridade do convencional nascimento. Parece-me agora que as repetições são sempre substancialmente diferentes dos acontecimentos originais. Refazer, quase nunca é fazer de novo e invariavelmente é fazer diferente. Recriar é, na génese, modificar. Reanalisar é buscar a diferença. E portanto é a necessidade de usar palavras que tantas vezes nos limita e induz em erro. A repetição é excepcional. É bom fugir ao lugar comum segundo o qual a vida é cíclica e pensar nela enquanto um caminho aberto.

Prometo que te escreverei já, com surpresas com as quais não contas.

Ainda te amo. Tanto.

Sérgio.


Alinhavar, 21 de Fevereiro de 2003

Fábio H.L Martins

segunda-feira, julho 24, 2006

Mariazinha, tantas saudades!

















ABOUT THE SUCCESSFUL EMOTIONAL RECOVERY OF A GAL NAMED MARIA

Early in the morning she wakes up
She winds her heart around this game
The radio machine is a playing

A song comes on and calls her name

It goes:

"Hey Maria
Stop what you do
Be proud to be ya
If I was in your shoes
Baby I'd get rid of all these blues"

Now she wanna face the facts
And try to make a stand
And to walk that track
'Till the bitter end
They say joy never leaves you
So why would you wanna stay and tease?
Why would you even worry about it?

And I ain't stupid
If that's what you heard
My deeds will prove it
You mark my words
I'm the greatest girl upon this earth

Maria I'm beautiful
Maria I'm adorable

(Maria I'm sexual) - Ups!!! os papás que não vejam isto
Maria But respectable
Maria That's me

Early in the morning she wakes up
She plants a seed and says a prayer
And people they talk talk talk
But she can't hear what they're saying

Here's a message
I finally heard
I can see my future
Stickin' out of the dirt
Now I know just what that's worth

Zita Swoon

A MARIAZINHA é a minha priminha linda que eu quase nunca vejo, aqui vai um poema que é, SELECTIVAMENTE, (espero que nunca precise de uma "emotional recovery", mas, se precisar, que seja "successful") para ela.
MARIA I'M BEAUTIFUL

Parabéns Paulo!


Parabéns Paulo! Parabéns mas sobretudo Muito Obrigado, por me fazeres sentir tão grato e com tanta coisa fundamental para celebrar neste dia.
Parabéns Amigo. O resto é connosco!

Aos outros amigos que por aqui passarem, sugiro-vos uma passagem pelo blogue do nosso aniversariante, na certeza que serão vocês (como depois, decerto, concordarão) a ganhar! Se estiverem bem dispostos não hesitem em deixar uma mensagem de parabéns(mesmo que vão atrasados). Fá-lo-ão feliz!

O referido blog é "A Gaveta do Paulo", aí à esquerda, em outras estações!

domingo, julho 23, 2006

O Inventário do mundo

"The Bride of the Wind", 1939, Oskar Kokoschka


“O inventário do mundo”

Apreciação a: “Kokoschka” (Globus, Grandes Pintores do Século XX)


Oskar Kokoshka (1886 – 1980) foi um excepcional homem simples, consideração que é diametralmente oposta à possível confusão com um homem excepcionalmente simples, que esteve longe de ter sido. Simples porque viveu no calor convulsivante do século vinte e reagiu aos picos febris como se espera que um homem liso reaja: refugiou-se, indignou-se, reagiu, tentou ajudar, foi solitário e solidário. E no meio de toda esta estreiteza, no coração da guerra, sempre se deixou iludir, quase como uma criança a quem custa ver o seu mundo ser constantemente desmantelado mas que quer acreditar e acredita na sua regeneração. À sua frente sempre a utopia. Consigo sempre as telas e os óleos: armas de arremesso, asas de escape.

Nascido numa Viena impregnada com o espírito fim-de-siécle do resto da Europa, cedo seguiu o ideal de Gustaf Klimt, depressa juntou a sua voz ás de Egon Schielle ou Oto Wagner e se embrenhou na luta pela reformulação do gosto, da arte e dos critérios estéticos centro-europeus – nascia a Secessão.

O seu expressionismo atinge níveis impressionantes nos retratos a que se dedica no início da carreira – “pinturas pretas”- carregados de relevos, de raspagens, de empastes, mas, sobretudo, pejados de mãos. É pelos desenhos das mãos que Kokoschka nos revela o inconsciente Freudiano dos seus retratados. Dito de outra forma são mãos carregadas de vida, de segredos, de poesia.

Depois seguem-se os anos de peregrinação / fuga, em que nada escapa ao seu olhar, à sua agudeza, e em que prossegue num enriquecimento técnico e simbólico, inventariando o mundo.

Tudo isto se pode conhecer neste livro, que por vezes surpreende com a subtileza e pertinência das suas legendas. Contudo é um livro que mostra uma incongruente falta de alcance e um evidente desequilíbrio na profundidade das diferentes fases da vida do artista Vienense. Isto para além de carecer de elementos básicos num livro como sejam um índice, uma paginação (!) ou mesmo um fim.

Sublinhe-se o facto de alguém sempre tão pouco resignado ter assinado todos os quadros com um irónico mas inevitável “OK”.

Se se somasse a totalidade da obra de Kokoschka o quadro resultante seria um fresco do mundo seu contemporâneo.


Fábio H.L Martins, em Cadernos do Alinhavar

De Cláudio Lourenço

Sintonias

Imagino que neste preciso instante
alguém esteja vertendo em verso
as mesmíssimas palavras que me afloram
mas que falho em dar-lhes
densidade corpórea.
Haveremos por certo de nos interpelar
e chegar a um consenso
que com idêntica precisão
sirva aos nossos intentos
de capturar o esquivo e quem sabe
o indizível,
divergindo apenas no percurso
(o que já é muito)
e no terreno a fecundar.
Nenhum de nós emitirá um só juízo, porém,
sobre as desmesuras acalentadas por ambos.


6/2003


Em Apetecia-me um Blogue está isto e muito mais. A não perder

A profundidade redimensionada



- “A conversa de Bolzano” (Teorema, estórias) e “As velas ardem até ao fim” (Dom Quixote, Ficção Universal), de Sándor Márai.


É depois destes dez minutos invisíveis passados em frente à intermitência do cursor informático que me arrependo: Arrependo-me de todas as referências elogiosas que aqui fiz a propósito de quaisquer outros livros.

E não fosse eu a pessoa tendencialmente dada ao excesso que estas palavras denunciam e ter-me-ia ficado pela brevidade daquele primeiro parágrafo, confiante em toda a pungência que poderia ter conseguido por ser conciso.

Acabo de ler “As velas ardem até ao fim”, enquanto que “A conversa de Bolzano” é um amigo que tenho há três meses. Interessa-me pouco falar concretamente de qualquer um deles. Existe uma linha que os percorre e une: uma prosa elegante, plena de musicalidade, uma forma tranquila de desvelar toda a inquietude inata à condição humana, um tom interrogativo, um pensamento subjugador. Tão belo quanto inquietante. Márai escreve a argamassa da vida. Debruça-se sobre o seu sedimento. A sua pena era iluminada. A sua chama é inesgotável.

Sándor Márai escreve como quem respira. Em qualquer das obras sobressai um período lento mas brilhante de inspiração, num ritmo dolente, tantas vezes preso em impagáveis detalhes. Depois o livro deflagra irremediavelmente e não sei que pulso galopa mais, se o daquelas páginas se o meu. Chega-se longe, mesmo muito longe. As personagens são desfiadas por camadas, escavadas fundo, e num instante estamos a um nível que os outros nem sequer afloram. É a coragem o nosso veículo, aquele que nos coloca face a face com a verdade.

Sándor Márai escreve a verdade, consciente de que ela não existe. É frequente colocar-nos um caminho – desenha-o em detalhe, cru, tortuoso, cheio de esquinas e de anfractuosidades. Inspira. E zás! leva-nos por ele adentro, não se desviando, antes decepando os obstáculos. Ficamos aturdidos pelo choque, iluminados pela clarividência.

Sándor Márai nasceu em 1900 em Kassa, Hungria (actualmente Eslováquia). Em1989 suicidou-se na Califórnia. Em 1990 foi permitida a publicação dos seus livros no seu País natal.

“A conversa de Bolzano” é um romance que parte de um episódio da vida de Giacomo Casanova relatado pelo próprio num dos 12 volumes das suas “Memórias”. Trata da paixão do grande devastador de corações, mas trata, acima de tudo, de nos colocar na pele de três personagens tendo o condão de nos mostrar o quanto qualquer uma delas tem quer de profundamente admirável como de abjecto e mesquinho.

“As velas ardem até ao fim” conta-nos a história de dois velhos, do seu reencontro passados 41 anos. Um deles erigido sobre um mar de solidão, outro sobre um horizonte de exílio. Ambos suficientemente capazes de perceber a inacessibilidade do tempo anterior. Tranquilos. Ambos convictos de que só se mantêm vivos à espera deste momento.

Se estes livros fossem padrões de respiração, o primeiro seria um resfolegar profundo e longo, o segundo seria um exercício de maior contenção, de uma respiração fina com menores excursões, terminando em forte expiração.

Fábio H.L Martins, em Cadernos do Alinhavar

sábado, julho 22, 2006

Dói-me o dia...

Desabafo-me-te E Amo-te-me .

Mas por telefone que é só entre nós!
Tive um dia difícil. Tão difícil...

O Jornal do dia seguinte


Luz na madrugada de 26/27 de Abril de 2006, mar


O Jornal do dia seguinte”

Um rosto sem traços, um par de olhos sem expressão, uma gargalhada gutural sem profundidade – que ecoa, ecoa, ecoa. A fulminante trindade que me percorre, quando o sono se esvai e o novo dia se insinua. E de repente percebo-lhe o significado: Medo. Medo que me povoa os sonhos e segue inexorável, torturando numa moínha fina – as manhãs, os lentos círculos solares, as frágeis despedidas lunares.

Acordo enquanto o meu alter-ego onírico grita estridente, desesperado, cansado. E acordo eu-mesmo: suado, febril, ofegante, estriduloso.

De relance percebo, no espelho, estampada e descarada, a expressão inequívoca do atordoamento. Enquanto escolho apenas uma das escovas, na tentativa de abreviar a minha passagem pela divisão que me mostra, racionalizo. Tento dar ordem à tempestade cataclismica que me inquieta (escolho a dos dentes) e pensar: “é só imaginação”; “vais ver que não passa de uma motivação lógica”. E invariavelmente chego a: “e se deliro, e se me torno psicótico, e se são alucinações, e se o meu avô foi mesmo esquizofrénico, e se...”.

Interrompo-me com a fuga, tranco os pensamentos na casa de banho, visto-me depressa, dirijo-me ao café.

Tudo começou à duas semanas atrás, no café. No “meu” café.

Todos os dias; à mesma hora, na mesma mesa, juraria que bebendo o mesmo café e comendo a mesma meia-torrada, vestindo a mesma gabardine grená, com a mesma expressão ténue que os meus sonhos exageram: o mesmo homem. Nada que me inquietasse não fosse eu ter percebido que, tendo ele um jornal com o mesmo título do meu, se fazia destoar porque a capa do dele era diferente. Ainda pensei: “edições diferentes do mesmo diário”. E por aqui me tinha ficado não fosse a repetição ter-me tornado maníaco. E comecei a sentar-me na mesa mais próxima. E tentei espreitar-lhe por cima do ombro. Mas ele era...fugidio.

Até que há dois dias aconteceu: ele levantou-se e foi à casa de banho. Pálido, espreitei:17 de Junho. Olhei para o meu:16 de Junho. Esfreguei os olhos. Confirmei. Levantei-me, caí, paguei a conta e saí a correr. Olhei para trás e ele chegava à mesa, com um sorriso sardónico firme por baixo do bigode alinhado.

E desde aí invadiu-me os sonhos.

Chego ao café. Hoje vou confrontá-lo. Nem o director de um jornal o pode ter com tanta antecedência.

Quando entro esbarro com uma gabardine grená que sai. Olho para A Mesa: Ninguém para além do Jornal. Hesito. Olho para trás e ele corre fintando o trânsito. Decido-me. Persigo-o desenfreado, e ele, claramente, foge. Não sinto o martelar do cansaço, mas o coração corre mais que eu.

De repente ouço: um chiar agressivo. De repente ouço: gritos e buzinas. De repente sinto: dor, anestesia, frio. De repente percebo: nada.

No café repousa o Jornal e no canto superior esquerdo da capa está escrito: “Jovem promessa do teatro português morre atropelado em trágico acidente em cadeia”.

Terá a morte vindo avisar-me? Dar-me uma segunda oportunidade?

Se eu soubesse que a morte veste grená, alinha o bigode e se anuncia...

Fábio H.L. Martins, Maio de 2003

sexta-feira, julho 21, 2006

Boa noite amigos

Tantos que passaram por aqui hoje! Obrigado

quinta-feira, julho 20, 2006

José Carlos Fernandes

Insónias... de novo! Que fazer com elas...
José Carlos Fernandes é, para mim, um génio.. Aqui uma pequena amostra, com a colaboração do meu scanner.. não é, nem pretende ser, ilustrativa, apenas bem humorada. Nada como "A pior banda do mundo", pena a gratuita afronta ao Michael Bolton.

2ª carta do Alinhavar

Querida Lúcia,

enquadrado entre as duas luas, a que me transporta e a que me ilumina, volto a escrever-te sem esperança.

Esta afirmação inaugural, que tão de súbito me caiu no papel, e que tão inesperadamente me fez deter durante um período indeterminado, pensativo, parece-me agora muito menos absurda! Quando, querendo apenas aludir à inexistência de ti como destinatário, me manifestei descarregado de expectativa, e depois me li caracterizando-me dessa forma, senti o baque da generalização sob a forma de um arrepio que na altura não deslindei!

Deixei então esta carta naquele primeiro ponto final, que me servia afinal de janela de dois sentidos, entreaberta entre a minha mente e aquela noite húmida! Decidi parar de escrever! Decidi reflectir, como se de alguma forma houvesse algum interruptor onde se activassem ou desactivassem as inescrutáveis sinapses do pensamento ( e que idílio seria essa existência em off).

Passei metade da noite a estibordo, consumi cigarros a ritmo de bolina em dias sem fôlego, e apreciei os fantasmas disformes desintegrarem-se na sua curta ascensão. Não medi se foi mais o que pensei ou o que lembrei, sempre empurrado pelas palavras que antecedem o primeiro ponto final.

Volto agora sem poder assegurar-te qualquer das palavras que escrevo, mas igualmente destituído de quaisquer medos. O arrepio dissipou-se lento. Como vês mantive a frase que até aqui nos trouxe. Assumo-me desesperançado, e por mais que dessa forma possa chocar os espíritos mais cépticos, vou mais longe na certeza de dizer que não: Não, a esperança não é a última a morrer! Quase um mês depois de ter deixado a doca pondero pela primeira vez os reais motivos pelos quais o fiz. Talvez infantilmente te diga que amo viver, amo a vida na sua totalidade de sinais e perfumes! Mas aos 44 anos descobri-me num ponto em que não sabia o que esperar de um caminho que outrora escolhi. Como sem esforço percebes, passar o Tempo a deixá-lo passar, funcionar como filtro roto de uma vida que flui em redor mas não através, é provavelmente o pior pesadelo de quem, como eu, a ama! Não me motiva minimamente ajudar os enfermos e mostrar o apurado técnico do corpo humano que aprendi a ser e agrada-me menos sentir a gratidão pegajosa por actos que fiz a tão contragosto! A hipocrisia agoniava-me, não tanto aquela com que os outros me tratavam como a com que eu lhes respondia. Sempre cortês e amável, sempre! Conformei-me, pelo menos durante 6 anos, a esta modorra. Mantive contactos informais com quatro pessoas. O meu pai, o professor Braga Menezes (director de serviço), a Margarida (enfermeira-chefe) e o Sr. Aníbal (que me vendia o jornal todas as manhãs). Comuniquei-lhes em detalhe e com antecedência aquilo que a ti não tive coragem de fazer e deixei para a véspera!

O meu pai disse:

“ saíste-me um maluco! Não te condeno nem às tuas ideias idiotas! Devias ter-me conhecido quando era novo! Lembro-me de uma vez que ||.. Mas agora conta cá ao velhote: quem é que levas contigo?”

O director disse:

“ Por mim tudo bem doutor...promovo o Abecasis a consultor. Deixe-me o processo da cama 17 terminado e entregue à minha secretária a nota de alta da 22. Boas Férias!”

A Margarida disse:

“Ah doutor! Vou sentir falta da sua má disposição! Não se esqueça de me mandar um postal. Quer que mude o soro da Sra. Gertrudes?”

O Sr. Aníbal disse:

“ O.k. Sr. Doutor! Quer que lhe vá guardando algum jornal? Já agora...se não é indiscrição...sabe aqueles medicamentos que tomo para o coração?.. já estão quase no fim...se me pudesse passar uma ou duas receitas...”

Fui lentamente burilado numa personagem de mim, do que me conheço, e um dia abri os olhos percebendo o que desconheço! Assustei-me! Detestei-me! Comecei por perceber que à muito não era visitado por qualquer tipo de emoção, e só a custo consegui perceber o que eram esse medo e esse ódio. Senti as restrições na minha vida interior baralharem-me até aos vocábulos. Deixara efectivamente de saber o que eram a tristeza e o seu oposto, a fragilidade e o fulgor, a sedução e a calma, a agitação. Tudo se apagara e restava-me o mais primário de mim, o criado, o transformado, o que era falso! A farsa tomara o meu lugar por completo!

E o que é a esperança senão um conceito que os homens tentam a custo insuflar, roubando-lhe em verdade e acrescentando-lhe em aproximações.

Dei-me conta agora que a esperança é alimentada à custa do adiamento e da ilusão. Para mim só faz sentido falar dela quando se a cruza com espectativa! Habituei-me durante anos saturados de nada a confundi-la com esse adiamento, caí no erro de vestir o hábito de encarar o futuro, de me iludir com inexistências que de tão irreais me são agora impossíveis de nomear. A que é que me agarrei? Nada havia a esperar daqueles dias que passei à espera. E esperei. De onde me vinha o ânimo?

Enfim morreu-me a esperança, mas não eu! Descobri depois do óbito que se pode sobreviver ao mesmo. Penso agora que reuni ,de facto, as condições necessárias para levar a cabo o real suicídio humano. Quando me reencontrei estava em plena posse de todas as minhas capacidades intelectuais. Sem ponta de descontrolo emocional, sem tragédia que abruptamente me desamparasse. Enfim, poderia, na plenitude da minha inteligência decidir: vou acabar comigo, não porque queira fugir à dor mas porque acabei, porque quero!

Optei no entanto por erigir a minha própria ressurreição! E cá estou.

Tu leitor anónimo que eu queria que fosses Lúcia; tu e muitos “tus” a quem o primeiro decida mostrar esta linhas, decidirás agora pela minha loucura, ou contraporás que se renasço me vejo reinvestido dessa esperança. Não concordo. Não na minha forma de olhar. Olho para a frente, para toda a fluidez que sobre mim tem avanço, para todas as marés e vidas nela contidas, que parece que se movem com um propósito; e apesar de serem estas as minhas parcas referências, ainda assim me sinto destoar! Renasço apaixonado, renasço feliz, mas renasço despreocupado em relação ao que fazer amanhã para me manter nesta harmonia! Para onde vou? ,por onde vou? , onde estou?, ONDE QUERO ESTAR?, são tudo questões ás quais não te consigo responder!

Talvez amanhã nada disto tenha validade para mim, talvez num amanhã tenha saudades de alguma coisa que deixei para trás! Agora sinto-me bem aqui.

Minha Lúcia, gosto mais de ti! Perdoa-me o egoísmo!

Prometo que te escreverei em breve para que partilhes comigo a descoberta desta imensidão inquieta que é o mar! Só agora, que o sono me esgota e o balançar calmo da água me faz sentir entorpecido me lembrei que não te contei novas deste mundo. Da próxima carta faço postal escrito.

Até breve.

Sérgio

Alinhavar, 4 e 6 de Outubro de 2002

Fábio H.L. Martins

quarta-feira, julho 19, 2006

Sombra de homem nenhum

(fotografia da chegada ao porto de Le Havre a 27/4/2006)




“Sombra de homem nenhum”

Uma sombra perdida numa multidão de homens exultantes. O sol no pináculo do seu ciclo lança-se a pique: É meio dia.

Uma sombra sem homem. Pensa:

Ainda há minutos éramos multidão de espectros cinzento-apagado, disformes, dançantes, esguias e escorreitas, estendidas e agrilhoadas aos pés de carne do nosso molde humano. E eu senti-me perdida, porque de todas nós só eu não tinha a minha metade física. Afligi-me primeiro por me sentir diferente e só depois percebi que me era concedida uma liberdade inédita no meu mundo reflectido. Tentei perceber as delícias da possibilidade de decisão nos gestos, mas cedo me apercebi que, quem sabe à custa de uma prolongada clausura de ímpetos, todo o movimento me era interdito. Parecia perra. Percebi que precisava do meu equivalente animado para me insuflar, para me fazer sentir existente. E então decidi: assim não existo, e se assim é, nada me permite acreditar que a minha outra metade exista ainda. Ou também. É provável que também ele se sinta (ou esteja verdadeiramente) perdido, desorientado, acabrunhado pela imaterialidade a que a luz o condena.

O medo da passagem do tempo dilacera-me devagar. Não quero que ele prossiga sem que eu entenda o que se passa. Apetece-me paralisar as nuvens, acreditar que é a terra o centro do universo e congelar o sol, ali em cima. Assim todas as outras sombras continuariam na sua sesta, encolhidas debaixo dos corpos e formas. E eu estaria sozinha. Poderia procurar e ser procurada. Mas dentro de minutos todas voltarão para o seu baile desenfreado, para a sua existência eternamente a dois, numa cumplicidade eterna e imune: a ciúme, a fugas, e até a palavras. Serei eu a única sombra incapaz? A única que falhou na tarefa inata de estar perto? Desejo ao menos que se faça noite, e que a penumbra me abrace e me esbata os contornos. E condene todas nós ao amanhã.

O chão desliza imperceptivelmente, indiferente a quaisquer desejos, o astro luminoso deixa-se ficar, chegam as outras silhuetas que de imediato se anexam aos respectivos amantes. Uma sombra perdida pensa:

Existirá maior solidão que a que se sente quando a companhia chega? Haverá maior vileza que a ausência de memória? Que posso procurar se me parece que a minha existência começou com a angústia do isolamento?

Nisto abre-se um clarão perto dela, alguém se aproxima com um séquito exuberante atrás, por instantes pensa: “ que sombra estranha ele traz, não pode ser dele. Então é ele. Fui encontrada”. Mas apercebe-se do guarda sol.. Fica à espera. Da amálgama de sons que explode naquela praça calcetada apenas ouve algumas palavras. As suficientes: “e foi aqui que o nosso Juanito se tornou um Deus”, ”mais de 800 kg de músculo selvagem:”, ”brindemos à sua coragem”.

Uma sombra que não o é, pensa:

Agora lembro-me! Sou mancha de sangue e estou aqui entranhada. Sou suspiro de touro e em vez de simbolizar vergonha significo valentia! Aos pés de que homem me queria eu agarrar? Não sou sombra de homem nenhum. Sou de todos.

Fábio H.L. Martins, Maio de 2003

Inspirações




Um contemporâneo activo, com um excelente site, onde vou frequentemente buscar inspiração e roubar ilusões.. Eric Fischl (auto retrato em baixo) merece a nossa atenção e vai tendo a minha... Deixo-vos a sugestão. A colecção Berardo (corpus) tem uma tela que merece ser vista ao vivo e que está já aqui no CCB.
De baixo para cima "The artist portrait"; "Bed, Chair, Head to foot"; "Bad Boy"; Bad, Chair; Changing".

Deixo-vos os link: http://www.ericfischl.com

terça-feira, julho 11, 2006

1ª Carta do Alinhavar

Lúcia:

fujo aos meus usuais lugares comuns, à minha familiar e inocente hipocrisia e não começo por inquirir aos céus se te lembrarás de mim. Aliás, talvez até melhor se adequasse à tua memória um início de mensagem tímido, fácil e fugidio. Não deixa ,contudo, de ser risível, que tendo eu partido para esta secretária na tentativa de expurgar de mim toda a minha habitual covardia, tenha começado precisamente por utilizar um verbo que me é tão penoso e tão bem me ilustra; em primeiro lugar a meus olhos, depois, se a mais alguns ( e cá estou eu a não dar por certas as mais irrefutáveis verdades), evidentemente aos teus.
Nesta altura sinto que contrariamente a toda a minha vontade te deixei bem no meio do meu turbilhão mental. Nunca foi minha capacidade tornar a minha mente inteligível e o meu pensamento fácil de acompanhar. Felizmente não sinto que essa incapacidade alguma vez tenha reflectido uma real desordem da minha consciência. O que aparento de caos ,acredita, não tem correspondência na minha real essência. Terão sido talvez o medo, a fuga, a hesitação que sempre mascararam a minha imagem. E como queria que assim não fosse.. Sabes como tive uma infância feliz, sabes até como era olhado como prodígio pelas habilidades simples pelas quais me habituei a ser admirado. Não terá sido aí que alguma coisa falhou.
Não te escrevo para me redimir de nada do que sou, do que me fiz e com isso eventualmente te tenha feito. Perceberás adiante, que na verdade nem sequer te escrevo. Terei mesmo legitimidade para questionar se de facto escrevo. Não, não deliro nem tento aludir à minha longa ausência para poeticamente invocar a inexistência. O que quero dizer é que talvez não possa afirmar que TE escrevo se parcas são as possibilidades de vires a conhecer estas linhas. Sendo a motivação pela qual redijo a de delinear uma carta para ti, compreenderás agora, que ,em suma, não sinta que de facto escrevo.
Talvez seja por isso que todo o pensamento tome forma tão descuidado, tão livre. Sabe bem, conceder-me agora a liberdade de escrever o que me aprouver. Nunca, como nesta situação, o atroz egoísmo que me morde o espírito me fustigou menos.
Lembrar-te-ás de mim, por certo, como um rapaz sonhador, um jovem idealista e um projecto de homem progressivamente acanhado e escondido por trás do pressuposto social. E com propriedade o fazes. Se é certo que acredito que ninguém em sã consciência poderá livrar o peito da opressão causada pelos próprios defeitos, não menos verdade o é que, ainda assim, a maioria de nós sente capacidade suficiente para julgar os outros e desdenhar das suas imperfeições. Acho que isso se deve fundamentalmente à facilidade com que cada um de nós dá absolvição aos próprios actos. Mas dar-lhes absolvição não significa esquecê-los, talvez atenuá-los e muitas vezes nem isso. Eu vivo incomodado com os desvios que tomo em relação à minha vontade, e quando a esta cedo, algumas vezes me atormento por me achar (e me tornar, de facto) egoísta e presumido. Percebes agora se te falar em desorientação?
Habituei a proteger-me sob a égide da loucura. Pensava para mim - “estou a endoidecer”-, e percebo agora como teria sido escarnecido se alguém de alguma forma me adivinhasse o pensamento.
Tenho necessidade de escrever como se fosse uma pessoa importante, o que na verdade sou...para mim mesmo. Sinto-me sempre a pessoa mais importante do Mundo, não me esquecendo, contudo, mesmo não tendo em conta a concepção do Absoluto, mas apenas do ponto de vista do senso comum, que não tenho a mínima importância. Que importaria ao Universo que eu nunca tivesse nascido? Que importa Demócrito, que importa Platão, que importa Picasso? Que importam se o Tempo não parará até parar definitivamente?
Comunico-te que decidi soltar as amarras, no sentido lato e literal.
Vendi a casa que conheces, os carros, a bicicleta, as acções e a maioria dos bens que 19 anos e 11 meses de vida hospitalar me permitiram adquirir. Não foi fácil, como podes imaginar pelo conhecimento que tens do meu apego às coisas “insignificantes”.
Com parte desse dinheiro comprei um barco em vésperas de afundamento. Preferi assim, pois pude passar os últimos seis meses a ressuscitá-lo e a fortificá-lo. Além de assim me ter ficado por quase metade do preço, ainda tem a vantagem de, dentro de certos limites, estar como eu o idealizei. Chamei-lhe “Lua”, depois de várias hipóteses que me pareceram ocas. Como sabes sempre tive uma inexplicável paixão pelo mar, e apesar de pouco saber dele e menos ainda de como se pode dominá-lo (ou deverei escrever, “de como evitar que ele me engula”?) aventuro-me a dissecá-lo devagarinho. Finalmente tirarei o pó ao diploma do curso de navegação que fiz à tanto tempo. Parto sem rumo, e imagino-te a chamares-me insano ao saberes que propositadamente parto sem qualquer noção geográfica. De propósito evito quaisquer mapas e levo apenas uma bússola. Tenho todo o Tempo ao meu dispor, o combustível que me foi possível armazenar e conto com os favores do vento para quando este se acabar. Para que se torne tudo mais claro digo-te que não pretendo voltar a terra. Jamais!
Não se trata de um suicídio como a esta altura, se lesses esta carta, poderias estar a pensar.
Opto por uma outra forma de vida, com coragem, para que, quando esta me faltar, eu saiba que é porque já a tive.
Como te disse, solto as amarras que aqui já me envolviam com tanta lassidão que tudo o que faziam era quitar-me movimentos mais amplos.
Se me permites a inconsequência de te chamar amor: meu amor, parto feliz, e em mim sinto subir a adrenalina a níveis que não me lembro de ter subido antes. Do azul para dentro tudo parece poder ser meu.
Se a viagem for curta, seja pelo que for que a interrompa abruptamente, não terei sobre os meus despojos um epitáfio que assinale o que fui ou para quem fui, mas parto com a viva esperança de com o meu leme poder rasgar na água uma mensagem que só eu poderia ler se um dia trocasse o azul revolto dos mares pelo azul esbatido e tranquilo dos céus.
Se estás curiosa em relação ao que levo comigo, digo-te que além do indispensável, levo a máquina de escrever, papel, lápis e todos os rascunhos meus que tinha guardados. Não evitei seleccionar alguns livros, duas almofadas, 23 fotografias, algum tabaco, um frasco vazio de um perfume teu, o Mischa (aquele velho peluche azul), o telemóvel (?), gin, vinho do porto, água tónica e uma quantidade considerável de copos.
Questionarias porque menciono os copos, não questionarias? Porque lhes destino uma função bastante diferente daquela para a qual existem. Desde que decidi partir, percebi que me seria impossível perder todo o contacto com os que cá ficam. Como também me agrada manter a liberdade de escrever assim descuidadamente, e porque, uma vez escritas, as cartas não mais farão sentido perto de mim, decidi lançá-las às marés em copos. Compreendes assim que seja impossível que venhas a ler esta ou as próximas mensagens que te destinar. Exclui as garrafas por uma simples questão volumétrica, de economia de espaço.
Esta é pois a primeira carta que te escrevo desde há 8 anos, a última que te escrevo em terra.
Parto amanhã e ao fim da tarde lanço o meu primeiro copo!
Adeus!
Sérgio

Alinhavar,12 de Setembro de 2002
Fábio H. L. Martins