The Dirty end of Winter

quinta-feira, abril 26, 2007

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Que feio, que feio
"This is the sound of someone losing the plot - Makin' out that they're Okay When They're Not"
Jarvis Cocker

Thinker blogger Award

The Dirty end of Winter (sem duvida, o que mais me da que pensar)
A Antecamara
A Gaveta do Paulo
Your Silent Face

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Contar música (duas perspectivas)

Alguém que morre, algures
Por Paulo Kellerman

Lado A

1.
Quando chegamos junto ao riacho, paramos; fico durante alguns instantes a olhar para o pedaço de água cristalina que desliza preguiçosamente entre tufos de ervas selvagens e rochas de colorações misteriosas, como se esperasse autorização de alguém, como se já nem o privilégio de pisar terra firme me fosse concedido; por fim, quando admito que afinal estou apenas a ponderar se valerá a pena ou não, forço-me a descer do cavalo com lentidão; sento-me numa rocha, aperto a ferida com a mão. Olho o charco que as gotas de sangue vão formando lentamente, segundo após segundo, reparo como o vermelho é menos vívido do que algumas horas atrás.
Um abutre passa, lá por cima; o suave ruído provocado pelo seu voo parece-me sinistro, malévolo; felizmente, já não há nada a temer, esgotei o medo; e por isso não o olho, não me protejo. De qualquer modo, talvez nem seja um abutre. Não importa; até poderia ser um anjo: que se foda.

2.
O cavalo já se refrescou, agora passeia nervosamente, mantendo-se afastado de mim, ignorando-me; em silêncio absoluto, como se desejasse que não desse por ele, que o esquecesse. E sei o que isto significa: mas não me revolto. Permito que fuja, que me abandone.
Quando, um pouco mais tarde, o procuro com o olhar e não encontro, sou incapaz de me sentir mais só que antes. E tento não ter pena de mim, o que é difícil visto que estou a morrer. Tento, contudo.
A noite cai, transmitindo-me tranquilidade; e talvez seja melhor assim: morrer devagarinho, sem medo nem ansiedade, sentindo o silêncio e escutando a solidão. Sem testemunhas.

3.
Olho o céu, assistindo à lenta transformação do azul em cinzento; não há nuvens, não há vento; nada que distraia ou adie, nada que denuncie vida, nada que ofereça esperança. Apenas o silêncio do mundo mesclando-se imperceptivelmente com o silêncio do meu próprio corpo, engolindo-o, dissolvendo-o.
Tento erguer-me mas as dores que sinto não o permitem. Então, desisto e deixo-me simplesmente deslizar pela rocha, deito-me na terra rija, fecho os olhos; pergunto-me se os voltarei a abrir, se quero voltar a abri-los.
Acho que não.

4.
Mas mudo de ideias, por nenhum motivo; e abro-os, devagarinho. Vejo uma estrela a piscar, envolvida pelo cinzento-escuro do céu; uma única estrela, ocupando toda a imensidão do horizonte, suficiente para iluminar toda a vastidão do universo. E decido que será ela a guiar-me, que será o seu ténue brilho a conduzir-me e orientar-me entre o negrume que se abate lentamente sobre mim, que reclama o meu regresso.
Fecho os olhos porque sei que a estrela continuará lá, sei que a escuridão do universo se confundirá imperceptivelmente com a escuridão do meu olhar, da minha vida; sei que tudo é, foi, escuridão, e que estou apenas a regressar.
Penso em tudo o que fica para trás, em tudo o que me motivou e distraiu, em tudo o que me entreteve; revivo memórias e prazeres e sensações. Evoco os ingénuos mantras que pretendi que orientassem a minha existência, que me esforcei por cumprir: viver plenamente, com paixão e entrega, com fervor e voracidade, aproveitar e saborear e dissecar cada momento, cada segundo, cada oportunidade. E sorrio, incrédulo com a minha ingenuidade, com a minha arrogância. Pergunto-me: para quê, afinal?
Desisto de procurar uma resposta pouco depois; sei, agora, que não existe; que se existir, não altera nada. Mas persisto em sorrir, não sei porquê, para quê. Sorrio, simplesmente.

5.
Sinto o inesperado e estranho calor de uma expiração acariciar-me o rosto, adivinho a presença de alguém junto de mim, muito próxima, tão próxima quanto possível. Ainda me pergunto se deverei abrir os olhos uma última vez mas opto por não o fazer porque sei que não fará qualquer diferença, prefiro limitar-me a sentir a respiração serena que me acompanha, a saborear o conforto ilusório e inconsequente de não morrer só.
Talvez seja apenas um qualquer animal selvagem que se prepara para me devorar, aproximando-se porque talvez já me julgue morto; ou será que estou efectivamente morto há algum tempo e ainda não o percebi, aceitei? Poderá, por outro lado, ser o xerife, que finalmente me alcançou, que se prepara para me pontapear enquanto suspeitar que eu possa sentir dor, até ter a certeza de que estou morto, até consumir o seu ódio.
Prefiro, contudo, acreditar que quem está junto de mim é o cavalo; sim, é possível que tenha regressado, para se despedir, para me acompanhar durante o último momento, num gesto fútil de solidariedade animal, de cumplicidade entre seres que pisaram o mesmo chão e respiraram o mesmo oxigénio, seres que compreendem e aceitam a irrelevância das suas existências.
Gostava de lhe ter dado um nome. Mas não faria diferença, afinal.
Depois, deixo de sentir a respiração tocar-me o rosto; mas sei que está lá, ainda: eu é que não consigo, nem quero, continuar a senti-la. A sentir.


Lado B

1.
Encontro-o, por fim. Está deitado perto de umas rochas, junto a um riacho; morto. Salto do cavalo e aproximo-me lentamente, saboreando o ruído provocado pelas botas na terra; o vento gelado da madrugada acaricia-me o rosto, agrada-me o desconforto que provoca. Ajoelho-me e tento descobrir algum resto de vida, algum indício de sobrevivência; olho-o durante muito tempo, sem saber porquê, para quê. Depois, levanto-me e dou-lhe um pontapé na face; a cabeça abana com violência, ouve-se um estalo que me conforta. Mas não me sinto melhor.

2.
Tento lavar o pedaço de sangue que ficou impresso na bota, formando uma mancha lúgubre; não consigo, desisto. Urino para o riacho, concentrado no ruído, resistindo à tentação infantil de fazer desenhos com o jacto; e espio as montanhas, tentando calcular quanto tempo faltará para o nascer do sol.
Caminho até ao cavalo, que respira lentamente, que me olha com insegurança; faço-lhe uma carícia, que recebe com indiferença. Pego a corda e regresso até junto do morto; faço-lhe um laço à volta do pescoço e assobio ao cavalo, que se aproxima contrariado. Prendo a outra ponta da corda ao cavalo, subo para a sela.
Avançamos devagar. Atrás de nós, o ruído do cadáver arrastado pela terra provoco um murmúrio monótono e pacificador, que me agrada. Ouço o som áspero da pele do morto a ser rasgada e pergunto-me: como será estar morto?
Talvez um pouco mais monótono do que estar vivo. Apenas isso.

3.
O sol nasce de repente, inundando a pradaria com uma luz ténue e fantasmagórica, um pouco intimidadora. A tranquilidade da noite dissipa-se lentamente, devorada por ondas de ruídos e movimentos, indícios de vida, testemunhos de urgência, voracidade, frenesim.
Sinto-me cansado.

4.
O tiro atinge-me no ombro; enquanto caio do cavalo, ouço o zumbido muito próximo de mais dois disparos, que não me atingem; ainda tento suavizar a queda mas não consigo, o embate é violento e doloroso, ruidoso; grito, de dor mas também de raiva, de impotência. Depois, contorço-me e rebolo um pouco, envolvido em poeira e sangue, tento arrastar-me para um local seguro; já não consigo sentir a mão, em sua substituição sinto uma dor violenta e opressiva, uma dor que já conheço de outros tiros, que já enfrentei. Olho em redor, em busca de refúgio, de uma rocha protectora, tento orientar-me, perceber o que aconteceu, o que se seguirá; lá longe, o cavalo afasta-se, arrastando o morto consigo, deixando atrás de si uma pequena nuvem de pó.
O silêncio da pradaria regressou abruptamente, não há qualquer movimento, qualquer indício de vida; sinto-me desprotegido e exposto, totalmente vulnerável; e percebo que, agora, o meu destino deixou de me pertencer, aceito que estou dependente da vontade de alguém: suspeito que haverá outro tiro, não compreendo muito bem por que motivo ainda não veio. Seria mais fácil se escutasse, vinda de algures, uma gargalhada maléfica e acusatória, reveladora; ou os passos apressados de um cavalo a aproximar-se, o ruído metálico de balas entrechocando; seria mais fácil se a morte tivesse um rosto, se fosse lida a acusação, explicados os motivos; seria mais fácil se não houvesse espera.
Mas há: o tempo passa, lento. E tudo o que muda é a intensidade da dor.

5.
O sol queima-me o rosto, tornando-se quase tão penoso de suportar como a dor que ainda sinto no ombro, que se dissipou pelas costas, pelo pescoço, dominando-me o corpo, apropriando-se de mim. Perdi completamente a sensibilidade do braço e da mão, o que me angustia e enfurece; para compensar, gesticulo com o outro braço, que é o único elemento do corpo que me obedece com alguma agilidade, talvez apenas para provar que ainda controlo alguma coisa; depois, muito tempo depois, pergunto-me: para quê? E gostaria de ainda conseguir sorrir. (Mas, e se conseguisse? Para que serviria um sorriso, que diferença faria?)
O sangue corre devagarinho, formando um lago vermelho que seca ao sol; e a dor regride lentamente, extinguindo-se à medida que deixo de sentir o meu próprio corpo. À medida que desapareço.

6.
Penso, não sei bem porquê, no meu cavalo perdido e imagino-o algures na pradaria, cansado e desorientado, arrastando atrás de si o cadáver desfeito, tentando fugir ao cheiro da decomposição, à perseguição da morte; deixando um rasto de sangue e pele e carne e osso, um rasto de vida. Depois, recordo o morto, imagino o que terá pensado durante as suas últimas horas, ferido e impotente, enquanto morria à beira do riacho; talvez tenha, simplesmente, sentido algo próximo do que eu sinto agora: indiferença. Sim, percebo que é isso o que sinto: indiferença; pelo futuro, pelo passado; por mim.
Penso nisto; penso como o tempo passará, vagaroso; e o sangue deixará de correr. Depois, virá a noite, e com ela a tranquilidade definitiva e permanente. A paz.

7.
Um abutre passa, lá por cima; o suave ruído provocado pelo seu voo parece-me sinistro, malévolo; felizmente, já não há nada a temer, esgotei o medo; e por isso não o olho, não me protejo. De qualquer modo, talvez nem seja um abutre. Não importa; até poderia ser um anjo: que se foda.

Contar música (duas perspectivas): Breve explicação

A ideia é criar estórias inspiradas por músicas.
A primeira escolha recaiu sobre “Waiting for the night”, dos Depeche Mode (link mais abaixo) e as duas perspectivas são a minha (“A queda da noite”) e a de Paulo Kellerman (“Alguém que morre, algures”).
Seguir-se-á Tindersticks, um destes dias.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Contar música (duas perspectivas) - Parte 2

"A Queda da noite"
Parte II – Theodore Maplewood



Era meio da manhã e o Inverno ainda não deixava a Primavera iluminar convenientemente os dias. Nesta época, só a meio da tarde é que o Sr.Maplewood deixava de sentir as pernas tremerem-lhe de frio, dos joelhos para baixo. O estigma subtil de tudo aquilo a que a sua condição o resumia: um corpo frágil, de quem perdeu a carruagem, de quem, sem querer, se desalinhou do resto dos comparsas do mundo. Uma carcaça débil, seca, desgastada e quase rota de um velho desbotado, porém desobediente, descontrolada e quase insurrecta, como uma criança teimosa. Era ,enfim, o paradoxo a que se via condenado.
Passaram dez minutos desde que saiu do consultório do Dr. Walcott, e nesta altura desce as escadas, fugindo ao elevador como forma de retaliar contra a doença. À medida que os degraus serpenteiam por debaixo dos seus pés as janelas interpoem-se-lhe furando o amarelo pardacento das paredes. Prefere olhar por elas, entrevendo os seus pares, que internados, por ali desfilam, olhando o céu, fumando, falando e trocando olhares. A alternativa é partilhar o olhar com quem sobe ou desce as escadas: médicos, estudantes, auxiliares,visitas, enfermeiros, enfim, uma infinidade de pessoas demasiado vivas.



Enterrado até às orelhas está o seu chapéu de abas largas. Feltro azul, o preferido do seu amor. Lembra-se de o terem escolhido, juntos, numa tarde de ócio, há meia dúzia de anos atrás.
Mais que a bengala ou os óculos de armação espessa, sabe que é este o adereço, que, de outra forma, também o desajusta das restantes pessoas. Mas dessa diferença gosta. Não é o desajuste histórico do “seu tempo” para o “tempo de agora” que lhe pesa, mas sim o desencontro involuntário entre o seu “mundo de dentro” e a forma como se move no “mundo de fora”, a guerra sem fim para a qual não se alistou e para a qual não existem tréguas ou cessar fogo – esse desequilibrio permanente, esta vida em vertigem e que não tem solução. De tão diferente que é debater-se voluntariamente com oponentes identificados, ou inadvertidamente, sem inimigo nenhum.



Decide parar no terceiro piso para comprar os jornais. Enquanto surpreende um jovem de bata branca, que esconde um jornal desportivo nas páginas centrais de um outro jornal, deixa que se lhe perca o olhar pela paleta de cores que emana daquela pequena banca. Da incrível sorte de objectos que ali se insinuam a sua atenção detem-se longamente sobre um livro de contos infantis, numa enorme embalagem, e que anuncia a oferta de duas miniaturas das personagens principais. Não lê o título, é o conceito que o prende e lhe aviva a memória: da única gravidez, sua e do seu amor; das noites em branco a planear delicadezas; das tardes extenuantes em que nenhuma montra das lojas especializadas ficava orfã dos seus quatro olhos apaixonados. Mas também: de como os sonhos ruiram em dias de dor; de como o fim precoce da primeira gravidez implicou a amputação de todas as seguintes; de como ele e o seu amor sentiram desintegrar a sua estrutura mental enquanto, apaixonados, trocavam caricias, se ajudavam e projectavam tornar filhos todos aqueles que deles quisessem pais.



Sr, qual é o jornal? Sr... Por favor, que jornal vai levar?
Sr...

Desculpe... Levo este, e também esse livro infantil que está atrás de si.



Debaixo do seu braço leva, agora, o jornal, o livro infantil e o livro de contos que esteve a ler enquanto aguardava a sua consulta. Uma extraordinária colecção de estórias, de um autor que deve ter ascendência estrangeira, e que o cativou pela profundidade, pela inteligência, e pela forma como consegue escrever com uma técnica diferente de todos os outros escritores – “escrita elaborada mas humilde” – pensou.
Decide descer o resto do caminho de elevador, e enquanto o espera pensa:



“Que destrutiva que é a solidão”; “Falo contigo, meu amor, mesmo não crendo que me ouças, mas a quem mais faria sentido dizer que me fazes falta?”; “ Se ao menos me sentisse capaz de fazer alguma coisa.”; “ Como é possivel que esteja tanto frio dentro de um hospital?”; “É admirável este jovem Dr.Walcott, sempre tão afectuoso e sorridente. É bom perceber que leva uma vida feliz. Deve estar sempre ocupado, cheio de desafios estimulantes, com uma vida que faz sentido.”; “Este elevador deve demorar muito tempo, talvez fosse melhor descer pelas escadas. “ Bahh. Para quê? Nada tenho que me espere. Só aumentaria a minha sensação de fraqueza”; “Bem vejo que o Dr.Walcott não me consegue dizer aquilo que ambos bem sabemos”; “Está numa posição ingrata, pobre homem. Espero que com os chocolates pense que eu acho que tudo corre bem e deixe de se preocupar com o meu espirito”; “Meu amor, decidi agora que hoje vou recuperar uma das nossas ideias, daquelas que nunca colocámos em prática: Comprei um livro e vou a uma instituição de acolhimento ler para as crianças que me queiram ouvir, que achas?”; “Desde que morreste desisti dos nossos projectos para me poupar a alguma dor, pensei que sem ti não teriam encanto, e que as faria apenas com amargura e alguma revolta, mas há pouco, assim que vi este livro, senti que se o fizesse agora estaria a concretizar o teu desejo. Era o que me pedirias para fazer se eu te soubesse ouvir, não era?”; “Se ao menos tivesse alguma familia, alguns amigos.”; “Sinto-me tão só.”; “ Por onde estará o meu irmão?”; “ Não o vejo desde que emigrou para Espanha”; “Quantos anos já passaram? Quando caiu o generalissimo?”; “Talvez não vá a sítio nenhum, ainda me mandam embora da instituição, pensando que sou um velho maluco que pode perturbar as crianças”; “Podia ir almoçar perto do mar, apanhar algum sol nas pernas”; “No fundo o Dr. Walcott é o meu único amigo”; “Como invejo a vida que ele tem, nunca deve sentir-se sozinho”; “Era assim que a vida devia ser para todos, era da mais elementar justiça que todos tivessem conforto, carinho, realização pessoal..”; “Que música irritante que dá nestes intercomunicadores do Hospital, se ao menos não tivesse ruído”; “Um belo bife grelhado na pedra, é isso que vou almoçar”; “Se é o médico o único amigo que tenho pergunto-me: que lhe ofereço eu, para além de preocupações que não lhe pertencem?”; “Finalmente, o elevador”; “Um tinto italiano saberia muito bem com o bife”; “Estou tão desamparado que o melhor que faria era acabar com a vida, não tenho nada para receber de lado nenhum”; “Se existir alguma coisa para além desta pobre vida que conhecemos, então irei para perto do meu amor”; “Se não existir irei para o seu lado”; “Esta noite, esta noite entrego-me a um estado menos agressivo de ser”; “Mas posso almoçar bem, escolher uma boa tarde para passar, olhar o mar mais umas horas”; “Sei lá eu que dores ainda me esperariam nestes próximos meses”; “Tenho que passar nos correios e pagar o gás”;“Além do mais ninguém sentirá a minha falta”.






Theodore Maplewood sai do Hospital e cumprimenta os seguranças levantando, discretamente, o seu chapéu de feltro.
Entra num taxi. Pergunta:
“Bom dia senhor, seria capaz de me levar a uma instituição de acolhimento para crianças orfãs?”

quarta-feira, janeiro 31, 2007

Contar música (duas perspectivas) - Parte 1

“ A QUEDA DA NOITE”



“I’m waiting for the night to fall
I know that it will save our soul
When everything’s dark, keeps us from a stark
Reality

I’m waiting for the night to fall
When everything’s bearable
And there in the still, all that you feel
Is tranquillity

(…)

I’ve been waiting for the night to fall
I know that it would save our soul
When everything’s dark, keeps us from a stark
Reality”

Depeche Mode





Parte I – Dr. Albert Walcott


Era manhã cedo e a Primavera já aquecia o esquálido consultório entrincheirado entre tantos outros no sexto andar da enorme torre do enorme hospital.
Na atafulhada secretária do Dr. Albert Walcott um dos cantos estava ocupado por uma pequena caixa de chocolates deixada, durante a consulta anterior, pelo Sr. Theodore Maplewood.
Um gesto simples e delicado ao qual não tinha sido capaz de retribuir.
Tão pouco lhe conseguiu dizer que em breve morreria.





Passaram longos cinco minutos desde que a porta largada pelo Sr. Maplewood bateu.
Walcott está pendurado à janela, a acabar mais um cigarro que sentiu que não poderia deixar de fumar naquele momento. Mais um engano, mais cinco minutos entregues à busca infrutífera de tranquilidade.
O sol sobe depressa e rompe, despudorado, por entre as torres de betão. Há gente dispersa por várias das centenas de janelas inscritas no horizonte. Uns fumam, uns olham, uns recebem o seu pedaço de luz, uns falam, uns falam sozinhos, uns têm batas brancas, uns verdes, uns azuis e uns estão nus. Mas todos partilham da única coisa que os une naquele espaço – liberdade. A liberdade de estarem entregues só a si, de se saberem não observados, livres de julgamento, livres de reparo, livres de não pensarem em mais nada senão em si, no seu conforto ou na sua dor, na sua vida ou na sua morte, no sol que chegará ou no sol que partirá. Liberdade enjaulada, a que melhor sabe.
Walcott apaga o cigarro e compra mais cinco minutos à paciência do próximo doente – espera que o cheiro se atenue. Nestes pensa:





“Merda de vida a minha”; “O que me fazia bem era poder ter aqui música”; “Para que é que servia eu dizer-lhe que a situação está fora do nosso alcance?, o que é que ele ganharia com isso?, passaria o tempo que lhe resta a viver a morte, morreria durante 2 ou 3 ou 4 ou 5 meses”; “Amanhã tenho o dia livre, tenho que o aproveitar bem, e não ficar parado como de costume, a decidir o que fazer antes de assumir não fazer nada”; “ Que chocolates serão estes? Para quê os doces querido Maplewood? Como conseguirei engoli-los sem mágoa? Como lhos poderei retribuir quando tudo o que tenho para conversar consigo são horrores?”; “ Se houvesse um rim compatível oferecer-lhe-ia 6 meses, talvez um ano de vida. Muito pouco pelos chocolates, mas seria alguma coisa”; “Apetecia-me ouvir o “Heartbeat” dos Knife, ficaria um bocado mais bem disposto”; “Eh! é verdade, hoje vem cá o Vincent jantar comigo, tenho que lhe ligar antes que ele se esqueça, não quero enfrentar o dia inteiro sem um pouco de companhia. Que bom, vem o Vincent, sempre tão bom”; “ Mas tinha que lhe ter dito, porra. Não só é o meu dever como é muita presunção minha achar que sei o que é melhor para toda a gente. Tinha que lhe ter dito. Merda”; “Tenho que chamar a Sra. Darcy, ou ainda arranjo confusão”; “Mas se ele me deu os chocolates é porque, assuma ou não perante a sua consciência; diga o que disser, ainda acalenta alguma esperança, e não é que tenha a ingenuidade de achar que será melhor tratado por causa da oferta...mas é assim que as pessoas se comportam na generalidade... e que direito tinha eu, do alto da minha ciência, de lhe devastar o pobre coração? Quem ganharia com isso? A lei e a verdade, dois conceitos..”; “Como estará o Vincent? Falo-lhe da ex-namorada ou não? Espero que desta vez se lembre que estou a trabalhar e não traga vinho”;





- Sra. Darcy, ao gabinete 6 por favor.

.

Detesto pessoas que dizem que detestam coisas!

domingo, janeiro 28, 2007

Hoje nevou no zoológico





You can never hold back spring
You can be sure that I will never
Stop believing
The blushing rose will climb
Spring ahead or fall behind
Winter dreams the same dream
Every time

You can never hold back spring
Even though you've lost your way
The world keeps dreaming of spring


So close your eyes
Open you heart
To one who's dreaming of you
You can never hold back spring
Baby

Remember everything that spring
Can bring
You can never hold back spring

"You Can Never Hold Back Spring" - Tom Waits e Kathleen Brennan para "O Tigre e a Neve" de Roberto Begninni

Para ti, que nunca viste o meu blog

quarta-feira, setembro 27, 2006

Halo

You wear guilt

Like shackles on your feet

Like a halo in reverse



I can feel

The discomfort in your seat

And in your head it's worse



There's a pain

A famine in your heart

An aching to be free



Can't you see

All love's luxuries

Are here for you and me



And when our worlds they fall apart

When the walls come tumbling in

Though we may deserve it

It will be worth it



Bring your chains

Your lips of tragedy

And fall into my arms



And when our worlds they fall apart

When the walls come tumbling in

Though we may deserve it

It will be worth it

Martin Gore/Depeche Mode

Os Outros



"O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós"


Jean Paul Sartre

Dead Can Dance - Yulunga (Spirit Dance)




1ª faixa do album "Into the Labirinth"

terça-feira, setembro 26, 2006

Sol nocturno


Remendam-se ideias, garatujam-se projectos, e no fim do dia levam-se para debaixo da almofada, na esperança que nenhum elfo apareça e mos roube, agora que já não acredito neles.


Passam-se dias seguidos, o tempo avança inexorável, e o equilibrio chega aos soluços.
Esperar a totalidade é o primeiro passo para falhar na percepção das coisas boas. Habituemos os olhos à realidade fragmentária e tudo se tornará mais fluído. Eduquemos o ego.


Deixemo-nos de pseudo intenções.

Por dia bebo 4 ou 5 cafés, fumo 20 a 30 cigarros. Penso: combato o cansaço, imponho-me pausas. Penso: para quê e de quê?
É importante saber ser derrotado, dar-mo-nos por vencidos, ceder. É o primeiro passo do (re)início, para a concórdia.


Dar-mo-nos por vencidos é uma decisão que implica uma considerável dose de coragem. Não é uma desistência, não implica estatismo: Impõe exactamente o contrário.

Ou de como se ama

Existe alguém que bem conheço, poucas primaveras e coração ao vento.
Corajoso. Ouvir de alguém tão novo: "Se há aqui alguém que já errou, e muito, sou eu, e é nessa perspectiva que vos falo" - É arrepiante.
Não te chamem imaturo, não te mudem por favor, que todas as mudanças que tens que sofrer, é bom que sejas tu a vê-las. Que não te mudem a perspectiva. Que não te mudem a forma de mudar. Por ti. A pulso. És tão bonito que quero ver-te crescer. Estou cá, para te ouvir. Para te aprender. Para ti. Sempre para ti.

segunda-feira, setembro 25, 2006

O chão


"Well we stick our fingers in
The ground, heave and
Turn the world around
Smoke is blacking out the sun"

Fumo



Toalhas enroladas aconchegam-te o sono enquanto luzes sintéticas afastam o meu.
Um lento torpor fumegante dissipa-se e nada já incandesce. O medo do vazio acende-se, porém. Num claro assomo de solidão grito-te, mas a voz não sai. Alguma coisa me prende ao silêncio. Emudeço.

Despejo nos teus olhos o turbilhão dos meus, mas num instante me descubro fito no chão.
O suave consolo de uma música devolve-me a lassidão do cigarro.
E nas inconsistências do dia se resolve a inconsequência das horas.

O'Neill e os convencidos da vida


Alexandre O'Neill

"Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear."


A excelência de O'Neill, aqui, na Luminosa Casa de Maio, de Maria P.:




domingo, setembro 24, 2006

sábado, setembro 23, 2006

Uma escolha

..difícil... escolheu-ma o meu amigo Paulo, há 2 anos, quando lhe mostrei esta música e ele me disse: "dá a sensação que poderia nunca acabar, perpetuar-se no infinito".
Provavelmente ele não se lembra, mas eu não me esqueci.

Uma espécie de sopro

I lay down by the river

The shadows moved across me, inch by inch

And all that I heard

Was the war between the water and the bridge

Turn to me, turn to me, turn to me

Turn and drink of me

Or look away, look away, look away

And never more think of me



Carry me



I heard the many voices

Speaking to me from the depths below

This ancient wound

This catacomb

Beneath the whited snow

Come to me, come to me, come to me

Come and drink of me

Or turn away, turn away, turn away

And never more think of me



Carry me

Carry me away



Who will lay down their hammer?

Who will put up their sword?

And pause to see

The mystery

Of the Word



Carry me

Carry me away

Carry me

Carry me away


Do incomparável "Abattoir Blues/ The Lyre of Orpheus"


sexta-feira, setembro 22, 2006

49 anos









A 22 de Setembro de 1957, em Warracknabeal, Austrália, nasceu Nicholas Edward Cave (Nick Cave).


Não me alongarei muito no que quero dizer.
Quem me conhece sabe que esta data assinala, assim, o nascimento de um amigo importante para mim. Sempre presente.

Sempre que neste Blogue surge uma música "não-cave" saibam que é um gesto contra natura.

Um amigo sim. Clamarão que me comporto como adolescente. Talvez tenham razão. Idealizo uma pessoa e transformo-a um pouco em minha. Abraço-o-me. Mas não são um pouco idealizadas todas as pessoas que fazem parte de cada um dos nossos microcosmos? E ele nem me exige muito esforço...

Homenageio-o e agradeço-lhe,


Parabéns, meu amigo.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Às vezes esqueço-me...

Happy Child in Trinidad & Tobago


O meu claro vazio criativo não me impede de vos encaminhar para os cantinhos que vou descobrindo.
Para dias chuvosos, em que apeteça rir ou sorrir, deixo duas sugestões, diferentes no teor. Descubram a vossa preferida.


No Peluxeu encontramos o novo recruta Vando (curioso, tem o nome do meu irmão, o mesmo aspecto e, coincidência das coincidências, é mesmo o meu irmão) a destilar humor muito, muito melhor que aquele que estamos habituados a ler.

Deixo-vos o link para o meu post preferido, mas não hesitem em descer um pouco e contextualizar a estória.

" Diário de recruta"




Longe do comum humor corrosivo e agressivo, longe das correntes habituais que nos vão cercando. É o meu maninho, Adoro-o, não escondo.
Que fazer??



De outro tipo de humor bebe o poema de Rui Costa, colaborador assíduo da Insónia de Henrique Manuel Bento Fialho. Não merece cair em esquecimento. Merece ser plasmado na antologia. Magnifico.

"Subject:RE"


Às vezes esqueço-me que rir é um remédio tão bom...






Spiders & Flies, Mercury Rev


Plans and schemes, thoughts and dreams,
Who cares what they mean?
When they work they're amazing things,
But when they don't I hear you scream.




Spiders and flies live and die,
Six legs to stand on and two wings to fly.
I can't remember and I can't decide
What was the season and the color of your eyes



A thousand kings, favorite queens,
Buried with them precious rings.
When they lived they loved complete,
But in their tombs I hear them scream.




Songs and spells, magic glass,
Who cares what they cast?
I dreamed I'd always love you complete.
I never thought I'd hear you scream.



Spiders and flies live and die,
Eight legs to stand on and two wings to fly.
It makes you wonder, "Why can't I?"
What was the reason for the color of your eyes, eyes



Mercury Rev, do album "All is Dream"

segunda-feira, setembro 18, 2006

O Túnel, a visceralidade e a insónia


Há um livro que li em tempos, e foi como se o tivesse lido ontem.


Há livros assim, que nos são viscerais. Nem sempre são melhores que outros que se soltam mais depressa, isto é, a visceralidade de um livro não é critério de qualidade. Acontece que sobre este sempre quis deixar umas palavras e nunca consegui. Teria de pegar nele de novo, e, confesso: não estou preparado.


Mas ontem descobri quem, sem querer, falou dele melhor que alguma vez a minha intencionalidade mo permitiria, e resolvi deixar-vos o link, e, claro, a sugestão de leitura.


O livro é "O túnel", de Ernesto Sábato, ou de como a linha mental que controla o nosso equilibrio é ténue.

Quem fala dele sem saber é Henrique Manuel Bento Fialho, no seu incontornável Insónia:

Rua perdida, alma exposta, murro no estômago


Hoje, dia grande, "A Gaveta do Paulo" tem obra prima: Chama-se: "Numa rua anónima de uma cidade qualquer", e é mesmo fundamental.

Atrevam-se

Climbing up the Walls - Radiohead





"..It's always best when the covers up
I am the pick in the ice
Do not cry out or hit the alarm
You know we're friends till we die.."



E por vezes adoece-se por uma música

sábado, setembro 16, 2006

Uma espécie de sono

"A fuga" - Teixeira Pinto

Há uma condição intrínseca às relações interpessoais, que não se enreda em afinidades ou se erige em respeito, que não se fomenta com carícias ou se adquire com argumentações, que não se invade de frenesim nem se abala em convulsões - a compreensão.
Que não é empática nem nunca dismórfica, que surge porque duas pessoas são ancestral e ontogénicamente conjugáveis, e que por último, contudo, se pode cultivar, preservar e proteger.
Gosto de pensar que posso proteger as pequenas bolsas de intersecção que identifico entre mim e algumas pessoas. Gosto de pensar que darei tudo por esses espaços em que comungo. Gosto de pensar que posso ser zeloso da ancestralidade.

Gosto de pensar que com poder demiúrgico se pode forjar uma compreensão, e do nada, solidifica-la, burila-la, faze-la existir. Torna-la mais verdadeira que as ancestrais.

Sem embuste, sem hipocrisia - com amor.

Existem atitudes que me magoam. Algumas dessas formam-me, constituem-me. Mas, ultrapassando os lugares comuns, a tendência para a capitalização da experiência, a versão pós-moderna e metafísica do "o que não mata engorda", a verdade é que, a maior parte delas me fere letalmente: porque há uma parte de mim que se extingue - uma parte de fé, de ânimo, de auto-estima, de felicidade.
Há uma ânsia catartica na dor e na perda, que nos coloca em risco.
Há tanta coisa que eu não gostaria que houvesse.
Há discursos hipócritas e discursos genuinos que serão sempre entendidos com os primeiros.
Há discursos inocentes e discursos ofensivos que serão sempre entendidos como os primeiros.
Há desejos de fuga que se atenuam em passos lentos, que são motores de busca, que nos entrecortam os dias perguntando-nos: estás no sitio certo? É verdade? Sentes isto? Viste aquilo? Era mesmo isso?
Há dúvidas que valem por mil certezas.
Há uma espécie de sono, de neblina.

Fábio H.L Martins, 16 de Setembro de 2006

sexta-feira, setembro 15, 2006

Excerto

O homem, como bom símio, é um animal social e imperam nele o amiguismo, o nepotismo, a trapaça e a mexeriquice como norma intrínseca de conduta ética - argumentava. - É pura Biologia.

Fermín Romero de Torres, personagem de "A Sombra do Vento"

quinta-feira, setembro 14, 2006

The Cure ( Ou de como nos podemos sentir sós)




"A Forest"

come closer and see
see into the trees
find the girl
if you can
come closer and see
see into the dark
just follow your eyes
just follow your eyes

i hear her voice
calling my name
the sound is deep
in the dark
i hear her voice
and start to run
into the trees
into the trees

into the trees

suddenly i stop
but i know it's too late
i'm lost in a forest
all alone
the girl was never there
it's always the same
i'm running towards nothing
again and again and again

fabulosa faixa nº7 do álbum "seventeen seconds", 1980

The Cure ( Ou de como se cultiva arrogância)

"wendy time"

"you look like you could do with a friend she said

you look like you could use a hand

someone to make you smile she said

someone who can understand

share your trouble

comfort you

hold you close

and i can do all of these

i think you need me here with you



you look like you do with a sister she said

you look like you need a girl to call your own...

like fabulous! fabulous!

call me fabulous!

and rubbing her hands so slow

you stare at me all strange she said

are you hungry for more?

i've had enough i said

please leave me alone

please go



it doesn't touch me at all

it doesn't touch me at all



you know that you could do with a friend she said

you know that you could use a word

like feel or follow or fuck she said

and laughing away as she turned

you've everything but no-one

like the last man on earth

and when i die i said

i'll leave you it all

door closes

leaves me cold



it doesn't touch me at all

it doesn't touch me at all



you really do need a sister she said

you really do need a girl to call your own...

like wonderful! wonderful!

call me wonderful!

and running her hands so slow

you stare at me all strange she said

are you hungry for more?

i've had enough i said

please leave me alone

please go

please go"

Faixa nº 5 do magnífico "Wish"



Ouço-a em repeat, até à exaustão. Nunca me soube tão bem. Não encontro forma de pôr aqui a faixa para partilhar convosco. A seguir deixo um vídeo de outra música especial, só para compensar!


Para evitar sobreposição de faixas, e porque agora me sinto mais Spider $ fly, retiro o wendy time..

A propósito de qualquer coisa

Encerrar um tríptico com um chavão da "geração beat" não é nada meu, mas foi o que acabei de fazer.

Não é meu, mas é de mim, fui eu que fiz. E neste paradoxo se encerra tanto do que nos baralha. Tanto do que me confunde.

Beat só o Takeshi. E pelo caminho que o texto leva há mais coisas que urge esclarecer (!?!) : O Dadaísmo também não é muito meu. Dada só Tzara e Miller.

Pseudo-qualquer-coisa, assobio-me, e repreendo-me por ser tão antagónico.

Há dias assim, que não existem e são um martírio.

Cura-te rapaz. Ou cala-te.

Pela estrada Fora (ou de como se reinicia #3)





www.olhares.com

A mão que nunca chega (ou de como se perpetua #2)




www.olhares.com

Pele corrompida (ou de como se começa #1)





www.olhares.com

quarta-feira, setembro 13, 2006

...e...

















...Passar os olhos por eles. Calmamente

Há dias em que me apetece


... (re)paginar os dias
...e

Palomar Observa o Céu


Lua da Tarde

"Ninguém olha a lua da tarde, e é exactamente naquele momento que ela teria maior necessidade do nosso interesse, dado que a sua existência não está ainda assegurada. É uma sombra esbranquiçada que desponta no azul intenso de um céu carregado de luz solar; quem nos garante que conseguirá, uma vez mais, tomar forma e ganhar brilho? É tão frágil e pálida e franzina;só um dos seus lados começa agora a conquistar um contorno, claro como um arco de foice o resto permanece ainda embebido de azul celeste. É como uma história transparente, ou como uma pastilha semi dissolvida; só que aqui o circulo branco não se está a dissolver, mas sim a concentrar-se, agregando-se à custa de manchas e sombras cinzento-azuladas, que não se percebe se pertencem à superfície lunar ou se são restos de baba do céu, que todavia impregnam o satélite, poroso como uma esponja."

de Italo Calvino, em "Palomar"

A todas as luas da tarde.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Einstürzende Neubauten - Sabrina









It's not the red of the dying sun
The morning sheets surprising stain
It's not the red of which we bleed

The red of cabernet sauvignon
A world of ruby all in vain

It's not that red

It's not as golden as Zeus famous shower
It doesn't come, not at all, from above
It's in the open but it doesn't get stolen
It's not that gold
It's not as golden as memory
Or the age of the same name

It's not that gold

I wish this would be your colour
I wish this would be your colour
I wish this would be your colour
Your colour, I wish

It is as black as malevitch's square
The cold furnace in which we stare
A high pitch on a future scale
It is a starless winternight's tale
It suits you well

It is that black

I wish this would be your colour
I wish this would be your colour
I wish this would be your colour
Your colour, I wish

domingo, setembro 10, 2006

Livros de Consciência Limpa


Na Praia da Vieira, na Intersecção entre a Rua Do Sol (nº1) e a Rua da Lagoa existe mais um espaço irresistível: bonito, tranquilo, música boa ( e a décibeis nada inibitórios de uma boa conversa).
Serve este post, não para fazer publicidade (que lhe está evidentemente intrínseca) mas para sublinhar uma iniciativa que começa hoje: Uma estante cheia de livros (em relação aos quais eu tive o prazer de colaborar na escolha) que podemos pegar, levar para a mesa e folhear. Melhor, uns marcadores de páginas/cartões de leitor personalizados, para que, quando voltarmos, no dia ou no ano seguinte, possamos pegar no mesmo amigo. Eu já comecei : "As aves do Paraíso também são falsas", de Wolfgang Hildesheimer. Agora volto daqui a um mês.
Sabe bem.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Imperdível

(Mais) Um motivo irresistível para passar por Leiria, no Bar Galeria Alinhavar, durante todo o mês de Setembro.
Eu não faltarei.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Confissões


"A Sombra do Vento" - Carlos Ruiz Zafón


Para uma amiga: Leio-o agora, já o tenho há uns meses, inicio-o depois da nossa conversa noctívaga, no inicio da semana. Leio outras coisas também, daquelas que me encaminharão a mim. Espero que esta mensagem não lhe passe ao lado, porque serve essencialmente de agradecimento (e desejavelmente de novo ponto de partida).

Para os amigos: Sinto-me em dívida, permanente, com vários amigos. Falta-me tempo, muitas vezes falta-me ânimo. Sofro de um problema razoavelmente sério: Queria fazer muita coisa, mas devagar vou percebendo que não posso. E o pior é que esta ânsia multiplicadora de mim me fragmenta em partículas tão pequenas que pouco é aproveitável. Estou optimista, apesar de tudo, crente numa renovação, a partir da qual me seja possível ir chegando a mim, ir chegando a vós: Lídia, Paulo, Margarida, Eduarda, Nuno, Hélder, Cláudio, Zé, Susana, Sérgio, Vando, Papás - a minha vida são, também, vocês, e nunca estarei convosco tanto quanto queria. Beijinhos

quarta-feira, setembro 06, 2006

Há dias em que me apetecia...


...ser um desenho
...ser de papel
...ser um herói

A dois (colaboração com Paulo Kellerman) - Partes III e IV


III

Conto-te, agora, o sonho que me acompanhou:

Estou numa floresta, rodeada de árvores, vergada apenas pelo peso insuportável do azul do céu; amanhece, o sol surge lá longe, amarelecido, pálido, preguiçoso; contrariado; e o vento importuna as minhas folhas, incomoda-me, contraria a minha vontade de não ser tocada, acariciada. Pássaros a cantar, grilos e sapos e gafanhotos a chilrear; etc. Depois, chegam os homens com as suas máquinas ruidosas, rindo alto, cuspindo em cima dos arbustos; fumando. Os pássaros e os grilos e os sapos e os gafanhotos (e também os esquilos e os coelhos bravos e as raposas) cessam os seus devaneios vocais; calam-se: e o seu silêncio é a prova de que talvez nem existam. Os homens aproximam-se de uma árvore e cortam-na; de repente, percebo que até o vento fugiu. Sinto-me só, desamparada. A árvore cortada é arrastada, acondicionada, amarrada; em silêncio, não se ouve um único suspiro, uma única súplica; não há revolta nem indignação nem medo. Nada. Simplesmente: estava lá e agora já não está. Vejo a árvore desaparecer, envolta numa nuvem de pó e fumo originada pelo camião. E dentro do sonho, penso: estou a assistir à dramatização da estória que o anjo me contou. Mas no preciso momento em que penso isso, o sonho altera-se, tudo se altera. E percebo que, agora, sou eu, e não outra árvore qualquer, anónima, que segue amarrada no dorso de um camião. Há instantes de pavor, de fúria, de desespero. Mas, logo depois, vejo o céu deslizar sob mim, vejo as nuvens caminharem comigo, como se me pegassem pela mão; e sereno. Sinto, pela primeira vez, a volúpia do movimento. E quase gosto. Decido não me revoltar. Espero. Sinto. Usufruo. Por vezes, invoco a escuridão e tento alienar-me; esquecer. Mas sempre que desisto e enfrento o que me acontece, o que não posso controlar (pergunto-me, inconscientemente: uma condenação que até se pode revelar libertadora? Uma libertação que inexoravelmente será condenação?), sempre que encaro a verdade, sempre que olho, o céu mantém-se azul e uma nuvem branca acompanha-me. Penso: enquanto o céu for azul, estarei bem; penso: enquanto uma nuvem me acompanhar, não estarei só. E então, sinto apoderar-se de mim um estranho sentimento de indiferença: apatia em relação ao meu destino, vulnerável passividade. Percebo (aceito): o futuro não me pertence: espera-me; e é bom. Não importa, nada importa. Penso: sou uma árvore, uma simples árvore; um único pensamento meu vale mais que todo o universo; e, simultaneamente, a minha existência não vale nada, é brutalmente irrelevante. Olho o céu; e percebo que algo se altera na tonalidade, na matiz, no brilho, no movimento do azul. Suaves metamorfoses, imperceptíveis mutações; transfiguração: o azul mantém-se azul, sendo outro azul. De repente, compreendo: o que tenho perante mim já não é o azul do céu mas o azul do mar. Olho, deslumbrada: sim, é o mar; o branco das nuvens transformou-se no branco da espuma, o vento agora embala ondas e não nuvens. Nunca vi o mar (como poderia ter visto?) mas sei que estou perante ele. Sou, agora, uma árvore firmemente erguida sobre o amarelo da areia; as nuvens deixaram de me tocar, de me pegar as mãos; agora, são as ondas que me acariciam os pés. Sinto-me inebriada; lá do fundo de mim, vem a acusação da consciência: mas que disparate é este? Não tens mãos nem pés, tens ramos; a seiva esvai-se da tua madeira, pereces; enlouqueces; deliras. Admito que o meu lado racional poderá estar certo; aceito que poderei estar a assistir à minha morte, ou talvez à simples transformação em algo que ainda não sei o que será. Indiferença. Conforto. Paz. A brisa que forma ondas e as arrasta até mim é a mesma que se entrelaça nas minhas folhas; o sol balanceia entre o azul do céu e o azul do mar, os seus raios abraçam-me, abraçam-nos; imagino que me sorri, cúmplice. Agora, que já não estou prisioneira da terra, sinto-me parte da natureza, sinto a comunhão dos elementos concretizando-se em mim. Será isto morrer? Talvez. Gosto, é bom.

De repente, acordo. E o regresso à realidade é doloroso. Sinto as garras da terra envolvendo as minhas raízes, aprisionando-me. Adivinho o nascimento de um sentimento de revolta e impotência; mas, então, percebo que estás perante mim. E enquanto te falo, enquanto partilho contigo o que acabei de fantasiar, percebo que a revolta de dissolve, libertando-me. Falo-te: e a paz inunda-me. Percebo: és o meu mar.

Mas não podes ouvir-me.

Eu falo-te. Estás aí, consigo ver-te; não sei que pensarás, se pensarás. Finjo que me escutas, finjo que a tua aparente ausência é, na verdade, concentração no som da minha voz, no significado das minhas palavras.

Não consigo parar de falar. Quero falar-te-me. Dizer-me-te. Há uma vontade de me dar que nasce nas minhas entranhas e controla por completo o meu arbítrio, dilacera com uma facilidade constrangedora o meu autocontrole.

Quero partilhar-me, dar-te pedaços de mim. Por exemplo, dizer-te que: tão pouco tempo passou; e já não estou certa do que te disse, há momentos. Disse-te, peremptória, que não lamentava a minha imobilidade; é verdade, nunca lamentei. Sempre acreditei que a imortalidade, a quase imortalidade a que fui condenada, é uma forma de mobilidade; aliás: uma forma superior de mobilidade; não preciso de ir, é o mundo que vem até mim. Sempre me refugiei na crença da minha superioridade; sempre cedi à arrogância. Mas, agora, tu vens e... Confesso-te: apeteceu-me correr atrás de ti. Bastou um fragmento de dúvida, bastou ceder por um instante: e logo os fantasmas negros e lúgubres da incerteza se precipitaram sobre mim, dilacerando num único golpe todas as minhas certezas. Saboreei a dor da impotência, da dependência: virias quando quisesses, se o desejasses; e eu: nada poderia fazer. Sim, é verdade que poderia esperar durante décadas, poderia esperar para sempre; mas, e se nunca viesses?

Desculpa, não sei por que te falo assim. Não gosto destes novos (esquecidos) sentimentos que vejo nascer em mim; angustia-me esta percepção de que, afinal, sou apenas uma crisálida: e o único propósito da minha existência é dar origem a uma qualquer borboleta, a outro ser que nunca suspeitei ter em mim.

Na verdade, tenho medo. E não sei como te pedir ajuda.

Disse-te: não esperarei por ti; mentira: espero por ti. Disse-te: já me deste tanto. Mentira: ainda não me deste nada. Digo-te: quero-te, aqui, meu.

Digo-te, ainda:

Já não recordo a última vez que estive apaixonada; digo-te que, para ser sincera, já nem sei bem o que é estar apaixonada. Peço que compreendas: não sei se estou a apaixonar-me por ti porque já não sei o que é amor.

Agora, ergues-te e afastas-te. Não te despedes, não olhas para trás. Simplesmente, voltas a sair da minha vida. Hoje não falaste; falei por ti: mas não me escutaste. Limitaste-te a conceder-me a caridade da tua presença; nada mais.

Perguntaste-me: como é que as árvores fazem amor?

E eu respondi-te, gritei-te a resposta, é o que tenho estado a fazer desde que voltaste até junto de mim: falando, as árvores fazem amor falando. Será que não reparaste: tenho estado a fazer amor contigo. Mas tu foste incapaz de perceber: converteste o meu acto de amor numa pérfida masturbação. E agora foges, indiferente ao meus gritos silenciosos.

Odeio-te.

E é nesse ódio que percebo a origem do meu amor por ti.

Paulo Kellerman

Abril de 2003

IV

Sorumbático. Assim estaria hoje se fosse qualquer coisa para o que quer que fosse.

Hoje não falo. Hoje penso. Hoje lembrei-me que nem eu me conheço, que nem eu consigo perceber bem onde está a diferença entre o meu pensamento e a minha voz. E duramente lembrei-me: não tenho voz. Tenho a capacidade de conseguir ser ouvido pelos homens, de os iludir com sons que não existem, de me desviar de dialectos, línguas, “surdezes”, raças, credos, vinhos e até mortes. E ser ouvido por todos. Mas não sei como o faço. Tudo assiste à minha vontade: uma linha de pensamento faz-me acreditar que falo. E falo. Mas hoje não quero. E não falo. Que terrível comodismo assente na ignorância. Porque para mim é o mesmo. Porque eu nunca me ouço. Porque o meu timbre é o mesmo do das rochas. E cansa-me existir tão vagamente.

Sou um anjo. Mas para quê? Não fosse a minha dor e tudo me faria acreditar que não sou nada, ou melhor, se existisse em mim apenas a crença em alguma coisa, ainda que essa fosse “não sou nada”, acharia que seria um fragmento de qualquer coisa, no tempo do antes-do-nada, na iminência de me tornar qualquer coisa.

Então sou qualquer coisa, e acontece saber que sou um anjo. Mas se ninguém me vê nem eu, mas se todos me ouvem menos eu, que faço por aqui!

Completamente desenraizado de tudo sento-me ao pé de ti de novo. “Desenraizado”. Penitenciar-me-ia veementemente se em vez de pensar falasse, se em vez de ser ignorado me ouvisses.

Voltei a ti, não me afastei muito e decidi que melhor que procurar outras às quais como a ti poderia dar nome, seria voltar aqui. Como prometi.

Fiz uma aproximação tão humana quanto pude: imaginei passos que daria e imprimi uma cadência ritmada à minha viagem, ao meu (como me entristece) deslizamento.

Parei porque me faltava qualquer coisa...qualquer coisa de não natural marchava comigo para ti. Percebi: o silêncio. Faltava o som dos meus passos.

Passou alguém na tua direcção. Segui-o e olhei para cima. Ganhei passos. Ganhei dimensão humana.

E aproximei-me mais. Ansioso, senti-me ansioso. Quase que senti um coração acelerar-se em mim. A expectativa cresceu muito.

Comecei a conseguir distinguir-te da mancha impressionista que te envolve.

E foi exactamente no mesmo nanosegundo em que te vi que o meu animo se dissolveu. Eu vejo-te. Tu tens imagem, involuntariamente dás-te, existes. E eu nem para quem quero me consigo mostrar. Nem para ti.

Queria que me percebesses, que a minha chegada se anunciasse como a tua presença surge sólida. E sinto-me egoísta, e imbecil, e de novo: sozinho.

À medida que os teus contornos se me foram tornando mais nítidos pensei em ti, em como, deixando toda a verosimilhança de lado (nada é mais inverosímil que eu ), se me ouvisses, nada me poderia garantir: que me querias por perto, que não te incomodariam as minhas incertezas, que não te retiraria eu de uma existência feliz e resignada.

E foi então que decidi: hoje não lhe falo.

E cá estou eu, perto de ti. Se tivesse um corpo estaria agachado, com as mãos a segurar os pés e a cabeça entre as pernas.

Mas mesmo assim vejo-te. És bonita. Penso em algo que nunca antes me ocorreu: são as árvores os únicos seres vivos que conseguem sentir a juventude depois da velhice, num ciclo continuo e imutável.

Se tivesse lábios sorria. Levanto-me devagar e vou-me embora, esperando não te ter importunado.

Tomei uma decisão. Não sairei desta cidade durante uns tempos. Quero sentir-me familiarizado, quero acreditar na possibilidade que a inexistência, a transparência e o silêncio têm de se sociabilizarem.

Cheguei sorumbático. Parto aconchegado. De novo. E desta vez nem precisei de te falar.


Fábio H. L. Martins

Maio de 2003


(Clique para ler as partes I e II)


The Knife "Heartbeats"







One night to be confused
one night to speed up truth
we had a promise made
four hands and then away

both under influense
we had demons in
to know what to say
mind is a razorblade

to call for hands of above
to lean on
wouldn't be good enough
for me, no

one night of magic rush
the start of simple touch
one night to push and scream
and make believes.

ten days of perfect tunes
the colors red and blue
we had a promise made
we were in love

to call for hands of above
to lean on
wouldn't be good enough
for me, no

to call for hands of above
to lean on
wouldn't be good enough
for me, no

and you, you knew you had to fight devil
and you, kept us away with wolf teeths
sharing different heartbeats
in one night

to call for hands of above
to lean on
wouldn't be good enough
for me, no

to call for hands of above
to lean on
wouldn't be good enough
for me, no

do album, "deep cuts"

terça-feira, setembro 05, 2006

Excerto de Excerto

"Cada dia que passa, torno-me mais pequeno, mais duro e mais seco. "

J.M.Coetzee

Excerto


"Perdi o amor por essa espécie de terra, pensou, já não me interessa senti-la entre os dedos. Já não quero o verde e o castanho, mas o amarelo e o vermelho; não a humidade, mas a aridez; não a sombra, mas a luz; não o macio, mas o duro. Estou a transformar-me numa outra espécie de homem, se é que há duas espécies de homens. Se me cortassem, disse, estendendo os pulsos, olhando os pulsos, o sangue não jorrava; havia de infiltrar-se nos poros e secar. Cada dia que passa, torno-me mais pequeno, mais duro e mais seco. Se morresse aqui, à entrada da caverna, ao olhar para a planície, com a cabeça apoiada sobre os joelhos, um dia seria levado pelo vento e mantido intacto, como alguém sufocado pela areia do deserto."

J.M Coetzee em "A vida e o tempo de Michael K"

quinta-feira, agosto 17, 2006

Alguns Momentos Antes...

Uma curta mas intencional pausa nas férias, para deixar breves palavras, manifestamente insuficientes, que pretendem retribuir um gesto. Enorme, de simples e tão cheio.

Ao Sr. Raúl Malaquias Marques, por agora apenas quero dizer que, Alguns momentos antes, o meu dia, era infinitamente mais pobre.

Muito Obrigado, e um sentido abraço.

Até breve.

terça-feira, agosto 15, 2006

6ª Carta do Alinhavar


(Atlântico, Perto de Le Havre, Madrugada de 26 para 27 de Abril de 2006)



Querida Lúcia :


Conto-te agora um dos mais inacreditáveis episódios da minha vida:

Lembras-te de na carta anterior te ter dito que secava algas para que quando me falhasse o tabaco eventualmente ter com que o substituir? Conhecendo-me tu como me conheces sabias melhor que eu que, assim que as ditas estivessem secas correria a experimentá-Ias independentemente do estado das provisões de tabaco.. e assim fiz.. Como as tinha separado por cores assim que pude cortei em fitas estreitas um bocado de alga dourada, enrolei-a e sentei-me na proa, abastecido com um copo de gin tónico. A princípio o sabor áspero irritava-me um bocado a garganta, secava-me a boca e estive pronto a esmaga-lo com a ponta do sapato. Mas há quarta ou quinta inspiração o aroma adocicado e o leve travo marinho fizeram-me protelar a decisão. Entretanto satisfez-me perceber: que era suficientemente forte para saciar a minha necessidade nicotínica. Que melhorava a palatibilidade do meu gin. Continuei. A meio do cigarro senti uma breve tontura que depressa se converteu em descontracção. Recostei-me na cadeira e fechei os olhos. Apetecia-me música. Vieram-me à cabeça alguns versos:



"Come over here, babe\ it ain't that bad \ I don't claim to understand the troubles that you had

but the dogs you say they fed you to\ lay their muzzles in your lap \and the lions that they led you to lie down and take a nap\

because the ones you fear are wind and air\ and / love you without measure \ it seems we can be happy now, be It better late than never"



Cantava-os já, quando, de súbito, uma voz colérica irrompeu sobressaltando-me e emudecendo­-me numa sucessão rápida. Dizia ele (que a voz era de homem):

-Desembainha a cimitarra verme Inglês, pois não saboreia o gume da minha aquele que não se defende.

Quando
me consegui orientar encontrei um homem jovem empoleirado no mastro da "Lua': brandindo alto uma espada que reluzia à luz das estrelas. Foi talvez o medo que me fez recuperar o fôlego:


- Mas.. mas.. Inglês?? Eu não... Quem és tu?. O que fazes ai?.. mas.. não.. Como foste ai parar?­- mal articulei eu.

-Atreves-te a negar quem és? Terás mesmo a ousadia de negar que me conheces? Acaso não te doem mais as cicatrizes dos espinhos que te infligi a ti e ao teu colega napolitano? Pois bem, se te fazes de parvo, meu verme, e para que não te trespasse e depois alguém diga que o fiz à socapa digo-te as coisas que melhor sabes na tua vida, não fosse o medo quem melhor acode à memória: Sou Cosimo Piovasco, Barão de Rondó, enamorado da Marquesa Viola, que deves ter cativa nos calabouços desta barcaça, pois se ela me falta, se lhe fizeste a mais doentia corte de que há relato e se o verme napolitano ainda dorme no porto de Ombrosa, então o teu rapto é mais evidente que o sol. Sobe e prepara-te para a refrega, pois sabes bem que não ando senão em árvores, e se aqui vim ter é porque este mastro também já foi uma, porque Viola é o que mais amo na vida, e porque a tua imunda embarcação teve a ousadia de rasar de tal forma o bosque que me bastou um salto para aqui vir ter. Sobe verme..

-Cosimo? Mas como! Não sou quem pensas, nem poderei estar eu a falar contigo. De facto conheço-te! Li-te num livro, és a personagem .. - dizia eu mais para mim que para quem quer que fosse.

-O que dizes rato infame! - gritou ele, vermelho de raiva, enquanto me acertava em cheio no nariz com uma espécie de bolota - que livro? Personagem?

Sentindo na pele que de livro aquela dor tinha muito pouco ignorei a verosimilhança e decidi entrar na conversa:

- Desculpa Cosimo! Tens razão. Despertaste-me do sono - disse resoluto - e não estava a perceber o que se passava. Sonhava com um livro e todo este sobressalto deu-me a volta á cabeça. De facto ouvi falar muito de ti. Mas não sou quem julgas. Venho de Portugal e viajo sem outra intenção que não seja a de esquecer-me de mim e encontrar-me renovado. Para perceberes que não sou quem pensas que sou vou aproximar-me desta lamparina para que me vejas o rosto - e assim fiz.

-Mas..- foi a vez dele se atrapalhar- então como?.. Passaste em Ombrosa e Olto Massimo ladrou­-te como se te quisesse comer um bocado..

-Talvez por ter sido a primeira vez que me viu, talvez porque eu entoasse uma melodia que o irritasse.. Sabes, é que vinha a cantar!

-A cantar ou a dormir? - gritou de novo, agora com menos bílis - Decide-te que assim não me entendo?

-A cantar antes, até adormecer.. Acalma-te. - parei e senti que começava a dominar a situação. Como fosse o silêncio o meu novo adversário, e porque a conversa me começava a interessar, prossegui:

- Que se passa entre ti e Viola? Achas mesmo que alguém a raptou ou fugiu pelo próprio pé?

-Porque perguntas isso? - perguntou, visivelmente afectado..

-Não sei.. - atrapalhei-me -..mas conheço a tua fama.. conheço a tua teimosia e a tua forma de viver.. pensava para mim como seria Viola, como reagiria ela a tudo isso.. Não deve ser fácil acompanhar-te em cima das árvores..

-Bem.. ela é dura! Faz-me ciúmes e tenta chantagear-me para que eu volte a por o pé em terra, mesmo sabendo que não o farei! Ela quer sentir que a amo mais que ás minhas convicções, e por muito que a ame mais que a tudo queria que ela entendesse que as realidades não se excluem. Se quebro esta minha forma de vida, à volta da qual me erigi e construi, desabo. Deixo de existir assim que voltar a pisar o solo. Para que quer ela que eu a ame depois?

-E disseste-lhe o que me acabaste de dizer?

-Nunca! Também ela nunca me diz que me ama mais que a qualquer um daqueles a quem deixa fazer a corte debaixo do meu nariz. Confessar-lhe o que te disse seria perder.

-Perder o quê?

-Perder para ela, ora! - exclamou, de olhos arregalados.

-Não percebes que nada mais está em jogo senão a vossa felicidade? - disse eu apaixonado - ­que nada se joga senão cartas e malha?, que se ela é como tu e nenhum de vocés admite "perder" perderão os dois? Basta que um perceba. Diz-lhe o que me disseste.. muda o fim do livro.. digo.. da história..

-E tu? Que fazes aqui? - perguntou, atrapalhado, como quem quer mudar de assunto.

-A minha história acabou sem que ninguém me tivesse avisado antes para não ser como tu, e agora ando, em busca de uma ressurreição, perdido, à deriva sem saber onde, sem querer saber, e tudo o que faço é atirar palavras ao mar. Vai. Muda. Tenta ser feliz. Luta contigo..

-Levas-me a Ombrosa? - perguntou, em claro assentimento.

-Onde é?

-Já ali, nesta direcção - e apontou.

Olhei para onde apontava e não vi nada para além da negritude. Quando voltei a olhar para cima, procurando-o, não o encontrei. Ainda lhe gritei: "Chamo-me Sérgio': mas ele nem tinha perguntado.

Acreditas-me? Pensei muito nesta conversa depois de ela ter acontecido, e muito gostaria eu de me falar a Cosimo, mas não tenho mais algas douradas. Todos os dias as procuro no saco.

Apetece-me música.

Saudades. Tantas,

Sérgio


Fábio H.L. Martins, Alinhavar, 28 de Maio de 2003



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