quinta-feira, julho 20, 2006

2ª carta do Alinhavar

Querida Lúcia,

enquadrado entre as duas luas, a que me transporta e a que me ilumina, volto a escrever-te sem esperança.

Esta afirmação inaugural, que tão de súbito me caiu no papel, e que tão inesperadamente me fez deter durante um período indeterminado, pensativo, parece-me agora muito menos absurda! Quando, querendo apenas aludir à inexistência de ti como destinatário, me manifestei descarregado de expectativa, e depois me li caracterizando-me dessa forma, senti o baque da generalização sob a forma de um arrepio que na altura não deslindei!

Deixei então esta carta naquele primeiro ponto final, que me servia afinal de janela de dois sentidos, entreaberta entre a minha mente e aquela noite húmida! Decidi parar de escrever! Decidi reflectir, como se de alguma forma houvesse algum interruptor onde se activassem ou desactivassem as inescrutáveis sinapses do pensamento ( e que idílio seria essa existência em off).

Passei metade da noite a estibordo, consumi cigarros a ritmo de bolina em dias sem fôlego, e apreciei os fantasmas disformes desintegrarem-se na sua curta ascensão. Não medi se foi mais o que pensei ou o que lembrei, sempre empurrado pelas palavras que antecedem o primeiro ponto final.

Volto agora sem poder assegurar-te qualquer das palavras que escrevo, mas igualmente destituído de quaisquer medos. O arrepio dissipou-se lento. Como vês mantive a frase que até aqui nos trouxe. Assumo-me desesperançado, e por mais que dessa forma possa chocar os espíritos mais cépticos, vou mais longe na certeza de dizer que não: Não, a esperança não é a última a morrer! Quase um mês depois de ter deixado a doca pondero pela primeira vez os reais motivos pelos quais o fiz. Talvez infantilmente te diga que amo viver, amo a vida na sua totalidade de sinais e perfumes! Mas aos 44 anos descobri-me num ponto em que não sabia o que esperar de um caminho que outrora escolhi. Como sem esforço percebes, passar o Tempo a deixá-lo passar, funcionar como filtro roto de uma vida que flui em redor mas não através, é provavelmente o pior pesadelo de quem, como eu, a ama! Não me motiva minimamente ajudar os enfermos e mostrar o apurado técnico do corpo humano que aprendi a ser e agrada-me menos sentir a gratidão pegajosa por actos que fiz a tão contragosto! A hipocrisia agoniava-me, não tanto aquela com que os outros me tratavam como a com que eu lhes respondia. Sempre cortês e amável, sempre! Conformei-me, pelo menos durante 6 anos, a esta modorra. Mantive contactos informais com quatro pessoas. O meu pai, o professor Braga Menezes (director de serviço), a Margarida (enfermeira-chefe) e o Sr. Aníbal (que me vendia o jornal todas as manhãs). Comuniquei-lhes em detalhe e com antecedência aquilo que a ti não tive coragem de fazer e deixei para a véspera!

O meu pai disse:

“ saíste-me um maluco! Não te condeno nem às tuas ideias idiotas! Devias ter-me conhecido quando era novo! Lembro-me de uma vez que ||.. Mas agora conta cá ao velhote: quem é que levas contigo?”

O director disse:

“ Por mim tudo bem doutor...promovo o Abecasis a consultor. Deixe-me o processo da cama 17 terminado e entregue à minha secretária a nota de alta da 22. Boas Férias!”

A Margarida disse:

“Ah doutor! Vou sentir falta da sua má disposição! Não se esqueça de me mandar um postal. Quer que mude o soro da Sra. Gertrudes?”

O Sr. Aníbal disse:

“ O.k. Sr. Doutor! Quer que lhe vá guardando algum jornal? Já agora...se não é indiscrição...sabe aqueles medicamentos que tomo para o coração?.. já estão quase no fim...se me pudesse passar uma ou duas receitas...”

Fui lentamente burilado numa personagem de mim, do que me conheço, e um dia abri os olhos percebendo o que desconheço! Assustei-me! Detestei-me! Comecei por perceber que à muito não era visitado por qualquer tipo de emoção, e só a custo consegui perceber o que eram esse medo e esse ódio. Senti as restrições na minha vida interior baralharem-me até aos vocábulos. Deixara efectivamente de saber o que eram a tristeza e o seu oposto, a fragilidade e o fulgor, a sedução e a calma, a agitação. Tudo se apagara e restava-me o mais primário de mim, o criado, o transformado, o que era falso! A farsa tomara o meu lugar por completo!

E o que é a esperança senão um conceito que os homens tentam a custo insuflar, roubando-lhe em verdade e acrescentando-lhe em aproximações.

Dei-me conta agora que a esperança é alimentada à custa do adiamento e da ilusão. Para mim só faz sentido falar dela quando se a cruza com espectativa! Habituei-me durante anos saturados de nada a confundi-la com esse adiamento, caí no erro de vestir o hábito de encarar o futuro, de me iludir com inexistências que de tão irreais me são agora impossíveis de nomear. A que é que me agarrei? Nada havia a esperar daqueles dias que passei à espera. E esperei. De onde me vinha o ânimo?

Enfim morreu-me a esperança, mas não eu! Descobri depois do óbito que se pode sobreviver ao mesmo. Penso agora que reuni ,de facto, as condições necessárias para levar a cabo o real suicídio humano. Quando me reencontrei estava em plena posse de todas as minhas capacidades intelectuais. Sem ponta de descontrolo emocional, sem tragédia que abruptamente me desamparasse. Enfim, poderia, na plenitude da minha inteligência decidir: vou acabar comigo, não porque queira fugir à dor mas porque acabei, porque quero!

Optei no entanto por erigir a minha própria ressurreição! E cá estou.

Tu leitor anónimo que eu queria que fosses Lúcia; tu e muitos “tus” a quem o primeiro decida mostrar esta linhas, decidirás agora pela minha loucura, ou contraporás que se renasço me vejo reinvestido dessa esperança. Não concordo. Não na minha forma de olhar. Olho para a frente, para toda a fluidez que sobre mim tem avanço, para todas as marés e vidas nela contidas, que parece que se movem com um propósito; e apesar de serem estas as minhas parcas referências, ainda assim me sinto destoar! Renasço apaixonado, renasço feliz, mas renasço despreocupado em relação ao que fazer amanhã para me manter nesta harmonia! Para onde vou? ,por onde vou? , onde estou?, ONDE QUERO ESTAR?, são tudo questões ás quais não te consigo responder!

Talvez amanhã nada disto tenha validade para mim, talvez num amanhã tenha saudades de alguma coisa que deixei para trás! Agora sinto-me bem aqui.

Minha Lúcia, gosto mais de ti! Perdoa-me o egoísmo!

Prometo que te escreverei em breve para que partilhes comigo a descoberta desta imensidão inquieta que é o mar! Só agora, que o sono me esgota e o balançar calmo da água me faz sentir entorpecido me lembrei que não te contei novas deste mundo. Da próxima carta faço postal escrito.

Até breve.

Sérgio

Alinhavar, 4 e 6 de Outubro de 2002

Fábio H.L. Martins

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