Lúcia,
finalmente escrevo-te enquanto o sol ainda vai alto. Esta luz imensa, esta claridade imensurável é a única inundação que tem sido significativa. Habituei-me à perspectiva oblíqua do horizonte e percebi que não me aldrabaram quando me aconselharam que tomasse o casco da "Lua" duplo: "São só mais seiscentos e poucos contos. O que são seiscentos contos quando podem salvar a sua vida. Isso para si são trocos.." - convenceram-me (apanharam-me em dia de pouca paciência). Deslizamos imperturbáveis apesar do rombo.
Acabei de almoçar. Este foi, provavelmente, o melhor repasto da minha vida.
Se bem me lembro, numa das últimas cartas prometi dar-te conta da pescaria do meu fim de tarde. Pois.. não me recordo precisamente de que tarde foi essa.. foi uma de muitas em relação às quais nada mais tenho para te contar a não ser de inúmeras tentativas frustes e infrutíferas, que só não me fizeram desistir porque, como decerto imaginarás, não tenho muito que me ocupe por aqui. A primeira vez que tentei pescar à linha pesquei, logo ao primeiro lançamento, um bom naco de burrajona. E não penses tu que é trágico eu ter pescado um fragmento cadavérico de um peixe qualquer, porque burrajona não é mais que um dos tipos de vela que o meu barco tem (essa noite dediquei-a à costura).
Não convencido tentei a versão submarina da actividade piscatória: mergulhei umas dúzias de vezes e ora a corrente "me cortou as vazas", devolvendo-me mais depressa que a uma rolha de cortiça, ora o lodo me tomou mais cego que um pneu.
A terceira tentativa foi, de longe, a mais idiota de todas: agarrei nos 3 metros de rede que tinha no paiol dos objectos inúteis e fiz dela um saco, manifestamente tosco e forçosamente pequeno. Ainda assim com uns 4 ou 5 metros de corda fixei-o a um dos flancos do barco e atirei-o para a água, não sem antes ter feito umas quantas tentativas e ter usado uma parafernália de truques e estratégias para garantir que a boca ficaria sempre escancarada. Consegui.. E nesta última semana tenho sido um dos maiores colectores de lixo de que há conhecimento na história da navegação: algas, uma garrafa (sem rótulo e vazia), algas, dois sacos de plástico, algas, um crucifixo de plástico (Jesus Cristo sempre soube andar à tona!), algas, paus, algas...
Até que há dois dias surgiram as primeiras formas de vida: um peixito minúsculo e uma gaivota que lhe era proporcional, ambos ainda vivos. Percebi que interrompera um acto de caça. Com sentido de justiça (que mais não foi que perceber que dali não faria farnel) decidi que, desfeito o enlace natural, ninguém deveria encher a barriga com o acidente: mandei a gaivota ao ar e improvisei um aquário para o peixe, até ter a certeza que está capaz de voltar para casa (enfim, velhos hábitos).
Mas de alguma forma este percalço soou-me a bom pronúncio. E esta manhã, entre as algas,estava um garboso exemplar de robalo. As vezes as tentativas mais idiotas...
O almoço, como te disse, foi magnífico. Posta de parte a hipótese de ser fundamentalista a ponto de aproveitar também as algas para um arroz ou uma salada, fiz um grelhado que cheirava até às antípodas e por consequência tive também direito a almoçar ao som de uma exultante orquestra alada. E pensei: quando é que as gaivotas aprenderam a apreciar um bom grelhado?
Foi de tal forma auspicioso o inicio deste dia que me dispôs como podes perceber.
Decido agora o que farei nas horas que me restam: posso dedicar-me ao donairoso e não menos estouvado cavaleiro andante da Mancha, à reciclagem dos frutos do labor da minha estimada rede ou à pacata perseguição de uma nuvem em forma de caracol que mesmo agora passa por mim.
Despeço-me por agora, na certeza de voltar ao fim do dia.
Teu, Sérgio
Conto-te a minha tarde:
Comecei por encarar o peixito, desenhando solitárias trajectórias mas com movimentos vigorosos. Ainda hesitei a propósito da sua vitalidade (vigor real ou simples desorientação desesperada?), mas assim que me lembrei de "Sextas-feiras" e bolas de vólei sorridentes dei-lhe alta imediata.
Desisti das desventuras quixotescas por pretender as minhas, como as provisões de tabaco se esgotam depressa decidi pôr as algas em sequeiro para em breve tentar fumá-Ias. E depois:
Segui o caracol e cheguei a um sitio onde o mar é platinado, a luz bruxuleante e o sol tem metade do tamanho e forma,de meia lua,..
Tenho a certeza que poderia passar toda a minha vida sem ter um momento tão relaxante e inspirador como este. O mundo parece suspenso a ouvir este suave marulhar. Peço ao Tempo para se suster por tempo indeterminado. Escrevo-te devagarinho, evitando corromper este silêncio cristalino com o ruído mecânico da máquina de escrever.
Escrever-te-ei pouco só para te dizer:
Que desta tarde tão almejada resulta um amor pela vida inquebrantável, que gostaria de te oferecer numa caixa de cerejas.
Que este amor pela vida é para mim a expressão máxima do meu amor por ti que é um todo do qual aquele é parte.
Que se este quinto copo te chegasse gostaria que lhe bebesses o conteúdo, pois escondida nele irá a essência de tudo o que vi de mais bonito sem ti.
Encontrei-me neste fim de mundo.
Sérgio
Fábio H.L Martins,Alinhavar, 5 de Abril de 2003
Fábio H.L Martins,Alinhavar, 5 de Abril de 2003
Cartas do Alinhavar 1ª / 2ª / 3ª /4ª
4 comentários:
Enquanto não tenho ninguém que me escreva cartas lindas como estas (se é que algum dia virei a ter alguém assim), deleito-me a ler as tuas.
Melhor forma de terminar a noite, depois de ter estado na tua companhia, é difícil...
Descansa bem!
Mais uma vez consegues transportar o leitor, subtilmente para a vida/viagem de "Sérgio". Fantástico.
Esta é uma das melhores frases que li neste net-mundo:
"Escrevo-te devagarinho, evitando corromper este silêncio cristalino com o ruído mecânico da máquina de escrever".
Divino.
Fica bem.Beijinhos.
Eu viajei no teu texto :)
Bj*
Margarida: Minha querida, que melhor forma de terminar o dia, senão com as tuas palavras, depois de ter estado contigo? Mereces cartas com muito pouca ficção e muito amor, e te-las-ás, estou certo. beijo Grande
Maria P: Definitivamente embaraçado, é assim que fico, quando leio as tuas palavras. Irreprimivelmente feliz, e com a certeza absoluta que não desistirei do projecto das cartas, é como me sinto també. Obrigado. Como não ficar bem? fico pois, muito bem! Beijo Grande
Sem comentários: que comentário tão carinhoso vindo de quem alega não os ter. :) Espero que tenhas viajado para um bom cantinho da tua alma, e que tenhas vindo de lá bem. Muito obrigada.
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