domingo, julho 23, 2006

A profundidade redimensionada



- “A conversa de Bolzano” (Teorema, estórias) e “As velas ardem até ao fim” (Dom Quixote, Ficção Universal), de Sándor Márai.


É depois destes dez minutos invisíveis passados em frente à intermitência do cursor informático que me arrependo: Arrependo-me de todas as referências elogiosas que aqui fiz a propósito de quaisquer outros livros.

E não fosse eu a pessoa tendencialmente dada ao excesso que estas palavras denunciam e ter-me-ia ficado pela brevidade daquele primeiro parágrafo, confiante em toda a pungência que poderia ter conseguido por ser conciso.

Acabo de ler “As velas ardem até ao fim”, enquanto que “A conversa de Bolzano” é um amigo que tenho há três meses. Interessa-me pouco falar concretamente de qualquer um deles. Existe uma linha que os percorre e une: uma prosa elegante, plena de musicalidade, uma forma tranquila de desvelar toda a inquietude inata à condição humana, um tom interrogativo, um pensamento subjugador. Tão belo quanto inquietante. Márai escreve a argamassa da vida. Debruça-se sobre o seu sedimento. A sua pena era iluminada. A sua chama é inesgotável.

Sándor Márai escreve como quem respira. Em qualquer das obras sobressai um período lento mas brilhante de inspiração, num ritmo dolente, tantas vezes preso em impagáveis detalhes. Depois o livro deflagra irremediavelmente e não sei que pulso galopa mais, se o daquelas páginas se o meu. Chega-se longe, mesmo muito longe. As personagens são desfiadas por camadas, escavadas fundo, e num instante estamos a um nível que os outros nem sequer afloram. É a coragem o nosso veículo, aquele que nos coloca face a face com a verdade.

Sándor Márai escreve a verdade, consciente de que ela não existe. É frequente colocar-nos um caminho – desenha-o em detalhe, cru, tortuoso, cheio de esquinas e de anfractuosidades. Inspira. E zás! leva-nos por ele adentro, não se desviando, antes decepando os obstáculos. Ficamos aturdidos pelo choque, iluminados pela clarividência.

Sándor Márai nasceu em 1900 em Kassa, Hungria (actualmente Eslováquia). Em1989 suicidou-se na Califórnia. Em 1990 foi permitida a publicação dos seus livros no seu País natal.

“A conversa de Bolzano” é um romance que parte de um episódio da vida de Giacomo Casanova relatado pelo próprio num dos 12 volumes das suas “Memórias”. Trata da paixão do grande devastador de corações, mas trata, acima de tudo, de nos colocar na pele de três personagens tendo o condão de nos mostrar o quanto qualquer uma delas tem quer de profundamente admirável como de abjecto e mesquinho.

“As velas ardem até ao fim” conta-nos a história de dois velhos, do seu reencontro passados 41 anos. Um deles erigido sobre um mar de solidão, outro sobre um horizonte de exílio. Ambos suficientemente capazes de perceber a inacessibilidade do tempo anterior. Tranquilos. Ambos convictos de que só se mantêm vivos à espera deste momento.

Se estes livros fossem padrões de respiração, o primeiro seria um resfolegar profundo e longo, o segundo seria um exercício de maior contenção, de uma respiração fina com menores excursões, terminando em forte expiração.

Fábio H.L Martins, em Cadernos do Alinhavar

10 comentários:

Cláudio disse...

Sem conseguir acrescentar mais nada ao que já disseste de forma tão intensamente pessoal, digo apenas que também achei estes dois livros fabulosos, experiências verdadeiramente únicas. Daqueles livros que nos marcam.

Fábio disse...

Já escrevi isto há quase dois anos, numa fase em que costumava escrever criticas de livros para os cadernos do alinhavar.Nunca mais escrevi nenhuma...

São dos poucos livros que tenho intensamente sublinhados. É bom saber que também leste o Bolzano, que é frequentemente ignorado. Em muitos sitios poderás ler que as velas ardem.. é o primeiro livro do Sandor Marai editado em Portugal..
Pior é saber que a Dom Quixote promete novos titulos dele pelo menos há 3 anitos...
Esperemos então.
Um abraço forte!

Cláudio disse...

Tenho uma boa notícia para ti! O interregno de 3 anos chegou ao fim. Já saiu "A Herança de Észter", edição da Dom Quixote! :)

Tenho muita curiosidade em ler mais críticas tuas a livros... Vais partilhá-las com a gente, não vais?!

Abraço!

Fábio disse...

Que boa notícia!!! Correrei a comprá-lo, ainda ontem procurei o site da dom quixote, mas estáva em obras!
Sim, talvez partilhe mais algumas criticas, com algumas condicionantes de circunstância (ainda gostar do texto, ainda gostar muito do livro) e outras masi concretas, na medida em que, tal com as cartas, uma boa parte das criticas ficou "fechada" no disco anterior do meu anterior pc.. Por falar nisso, não me chegaste a dizer quantas cartas tens.. dava muito jeito que fossem 7...

Abraços

Cláudio disse...

Desta vez sou portador de más notícias. :( Os únicos textos teus que tenho são: as 4 primeiras Cartas, o Sued e o projectoadois[1]2. Talvez o Zé tenha mais alguma coisa, não sei...
Malditos PC's! Quando se afundam teimam em levar com eles as nossas pequenas relíquias.

Fábio disse...

o Paulo, o meu amigo do projecto a dois (que não continuou porque está encalhado em mim há 3 anos) tem até à 6, mas em papel..
Por falar nele, espero que conhecas o blogue "A gaveta do Paulo", vale mesmo a pena.
Angi ainda não me deixou por aqui o Sued, mas um dia virá cá parar.
Um abraço.

Cláudio disse...

Já começei a ler alguns textos do Paulo... e desde que comecei ainda arrasto os queixos pelo chão! Fabuloso!

"Conheci-o" em tua casa, não sei se te lembras, e logo nessas primeiras impressões pareceu-me ser uma pessoa espectacular.
Claro que ser-se uma pessoa espectacular, não é condição à priori para ser um bom escritor e vice-versa. Mas ele funde mesmo as duas coisas numa só, não é verdade?

Quando tiveres tempo tens que desencalhar esse navio que não merece perecer assim em águas estagnadas!

Abraço!

Fábio disse...

É verdade, ele é extraordinário, em tudo. Tenho que arranjar-te o livro dele, "Gastar Palavras", que foi o melhor livro de contos do ano.

Quanto a continuar... não sei. Eu e o Paulo temos mais uns projectos em curso, são 2, desta vez não escrevemos juntos, mas a partir da mesma ideia. Veremos no que dá. Ando nisto há mais de um mês e escrevi uma linhazitas..

Abraço!

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

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