terça-feira, agosto 01, 2006

4ª Carta do Alinhavar


Atlântico, algures no meio do nada 26 de Abril de 2006


Bela Lúcia,

tivesse eu competência e saberias melhor o quanto és bonita, o quanto os espelhos te mentem por reflectirem o teu olhar em vez dos teus olhos. Por reflectirem o teu estado de alma em vez da tua alma. Tivesse eu tido tomates para sair das esquinas para onde me esgueirei quando te aproximavas demais e saberias agora o quanto esta opinião é recente e não te remete para a firmeza dos 35.

Quando nos partimos em dois, e voltámos à condição de solitários, e ficámos órfãos da metade que um era do outro, e tentámos acreditar que existia vida à distância, e deixámos à solta os instintos que se atenuam nos amantes, e tentámos fazer dessas pequenas partículas a totalidade, e quisemos seguir como se não fossemos o mesmo; se te lembras, nessa altura, na minha mesinha de cabeceira dormia o Dom Quixote (não o verdadeiro, mas o de Cervantes).

Não sabes mas digo-te, que naquele dia amaldiçoei todos os objectos, todos os cheiros, todos os sons, todos os fragmentos de memória que enchiam o quarto. Porque amaldiçoar-me não chegou, porque amaldiçoar-me foi fácil e inconsequente. Finalmente detive-me a olhar: aquele anfiteatro enorme (tão cheio contigo dentro), aquela luz de fim de manhã a entrar, sorrateira, entre as frestas das cortinas mal postas, o último copo duplamente tingido – em cima pelos teus lábios, em baixo, pelo néctar rubro que incendiou o nosso corpo antes do fogo deflagrar. Fechei a porta com um estrondo, tranquei-a e atirei a chave ao rio. Atirei-a do miradouro da Graça. Quer a minha memória dizer-me que chegou ao rio e lá se aninhou. Afundou-se. Passei a dormir na sala. Só umas semanas antes de partir para aqui arrombei a porta. O teu perfume ainda lá está, como o batôn, como a luz. O livro resgatei-o e trouxe-o comigo.

Há uns dias decidi começar a lê-lo. Quando o abri caiu-me uma folha amarela nos pés – e juro-te, magoou-me. Sei-o porque gritei. Desdobrei-a e li as palavras que me recolocaram no dia em que, corajosa, te despediste de mim, dizendo-me, por bilhete:

“Não está mais nas tuas mão fazeres de mim uma alma feliz. Corrijo, não está nas tuas mãos contribuir para a felicidade que, instintivamente, procuro. Tentarei eu ter um vislumbre no meio da tempestade que, seguramente, se abaterá. Despeço-me com o amor. Todas as suas três partes: A que me é despertada pelo olhar que, mais uma vez, sobre ti poiso. A outra, que é memorial, tão histórica e tão impossível de apagar como uma nódoa que fez buraco. Finalmente, porventura a maior parte; a de todo o amor que te quero dar e esbarra nesse teu...não sei. Em ti.”

O papel senti-o de manhã. Crepitante debaixo da tua almofada doce e naturalmente perfumada com a tua saliva. Estava já fria.

Li-o. Depois das emoções previsíveis perdi-me em admiração pela tua coragem. Pela forma como optaste – e sei que pensaste bem –pelo bilhete. Evitaste o olhar, evitaste as palavras, evitaste sucumbir. Como sei que querias. Sucumbir, voltar, abraçar, beijar, foder. Esquecer. Acima de tudo esquecer.

Comecei, talvez desde aí, a amar-te mais.

E sim, eram estas as surpresas de que te falei na última carta, eram as tuas palavras e as reacções que nunca pudeste saber.

Como passei sem ti? Imagino, porque te conheço, que nunca te terás questionado acerca disto. Não te deixei qualquer margem para que te pudesses agarrar à convicção de que me farias falta.

Não passei. Tanto quanto te posso escrever e explicar não passei sem ti. O fulgor do meu amor por ti chegou depois desse dia. Foi chegando. E por me ser insuportável a tua ausência, não te deixei partir. Mantive-te comigo. Mantive-me contigo. Mantive-te nos corpos de todas as que me receberam. Dei a todas o teu perfume, ofereci a todas os teus livros preferidos. Mas nunca as olhei, nunca lhes toquei, nunca as beijei, sem estar perfeitamente seguro de que uma centelha de ti lá estaria, acesa, à espera que eu a encontrasse: numa mão, num cabelo, numas unhas, num reflexo, numa frase, num gemido, num suspiro, num espirro.

Não foi longe o meu delírio, a minha desapiedada estratégia devorou-me depressa, mais depressa que àquelas que se deixavam enganar: sabiam-se enganadas. Queriam-se enganadas.

Percebi que me concedia a decadente facilidade de ceder à dor, fechar os olhos e prosseguir – egoísta e sôfrego – neste consumo de vontades, nesta fogueira de ilusões em que se queimavam: ideais, sonhos, felicidades, memórias, segundos. Tantos segundos.

Acautelei-me antes de me esvaziar por completo à medida que me enchia de vícios (não te interessa saber quais. Imagina todos). Parei.

Estava fraco, ainda não era a altura: Mantive-te comigo. Mantive-me contigo. Outro plano barato que comprei à ausência de capacidade de raciocínio: percorri os nossos caminhos, vi os nossos filmes, e percorri e vi aqueles que sempre me disseste para ver e percorrer ,mas que, por este ou aquele motivo, ainda desconhecia. Ouvi a tua música. Como criança li as nossas cartas adolescentes. E foi bom, até que a impessoalidade passou a constituir um preço muito caro neste plano. Percebi que te estava a manter à custa de uma alteração grosseira daquilo que eras para mim. Parei.

Pensei.

Só te seria fiel se nada fizesse para te manter comigo (me manter contigo). Aturadamente, passei a nada fazer. E encontrei-me. Deixei de ser a criança no mundo dos grandes. (Ou cresci ou o mundo passou a ser dos pequenos).

Sim leste bem, percebeste melhor: fui voyeur. Mas foi tarde. Melhor, foi tarde que passei a espreitar-te, deliberadamente, nas esquinas. Foi depois de muitas vezes te ver, por acaso, à distância. e fugir. E assustei-me. Porque dissolvida na tua beleza encontrei uma palidez, uma sombra, um abismo aberto no olhar. E, não estivesse a chover, juraria, no último dia, ter visto duas lágrimas escorrer. Espessas.

Pela primeira vez em muito tempo agi impetuosamente, saí da esquina, enrolei depressa o jornal que me camuflava, e lancei-me a ti. Estávamos a escassos três metros quando uns braços que não eram meus te enlaçaram. Depois outros. Desviei-me o melhor que pude mas ainda chocámos. Estavas tão abraçada que nem notaste. Mas houve um momento mágico. Aquele em que as nossas mãos se tocaram, e a minha pele pode de novo tocar a mesma, e em que pude sentir a tua maciez, ou imaginá-la, ou imaginar tudo. Cheguei à esquina mais próxima, desenrolei o jornal e olhei-vos. Uma adolescente e um adulto. Podiam ser a tua família, podiam ser tudo, mas nada senão a família me ocorria à mente. Mas então que te fazia chorar? O médico, o cão, os amigos. Percebi que estava só no início de um novelo interminável de possibilidades. Saí do palco decidido a tentar não concluir nada. Estavas abraçada, tinha-te visto e tocado. Tocado.

Não te surpreenderia saberes agora que há pouco tempo nos tocámos? Tu que nem sequer me voltaste a ver?

A vida na “Lua” continua nova. Agora vou pescar! Talvez te conte numa outra carta. Amo-te.

Sérgio

Fábio H.L. Martins, Alinhavar 26 de Fevereiro de 2003



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5 comentários:

Maria P. disse...

Belíssimo.

Acabei de ler, e não consigo definir os setimentos que afloram em mim, depois desta leitura. Encantada.

Desculpa a pergunta, mas estas " cartas o Alinhavar" estão inseridas nalgum trabalho publicado?

Tem um bom dia, beijinho.

ana disse...

Lindo!
Ainda só li a 1ª carta e agora esta… tenho que rapidamente ler as outras. Escreves muito bem, parabéns!

Anónimo disse...

Já li...(re)li...e voltei a ler...
Parabéns...

Beijinhos&Beijocas

Anocas

Fábio disse...

Maria P., as cartas do alinhavar era um projecto do qual eu fazia parte, que visava uma eventual publicação. Eramos 6 ou 7 pessoas, a assumir uma personagem, livremente e a escrever sob a forma de carta, que iam sendo "expostas" em Leiria, no Alinhavar. Não havia quaisquer regras senão no tipo de letra e na extensão da Carta. Foi muito aliciante para mim participar (eu, sem quase nada escrito, nada publicado, respondendo em concreto à tua pergunta, mas a maior parte dos outros elementos parou após a primeira carta. Entretanto, a liberdade do projecto permite-me, ainda hoje, pensar em continuar, e o meu objectivo é colocar aqui uma todas as terças feiras.
Quanto à tua opinião...deixou-me comovido, feliz... obrigado obrigado.
Beijo

Ana, que bom encontrar-te aqui, onde os dias são chuvosos. :) Muito muito obrigado, não penses que me esqueci do Barry Adamson, está para breve!
Beijo

Anocas: :) Beijinhos

A Todas: Desculpem a demora da resposta, mas estive uns diazinhos sem acesso ao blog, a comemorar o aniversário do meu irmão, como percebem noutro post.

Maria P. disse...

Agora já entendi. Não deixes de publicar essas cartas, merecem.

beijinho.