sexta-feira, agosto 11, 2006

A dois (colaboração com Paulo Kellerman)


(CCB, Jardim exterior, 24/02/2006)


I

A dor da solidão rasga-me, avançando por mim adentro com o ímpeto de quem sabe ser invencível. E tudo o que posso fazer é caminhar por estas ruas e sentir a passagem do tempo, olhar e fantasiar, arrancar de dentro de mim mais um farrapo de esperança, crer, inventar fé, fingir ilusões; e esperar que me encontrem, que dêem por mim, que me chamem.

Há momentos mais difíceis; como agora.

Em que me sento neste pedaço de chão, fixo o olhar no vazio que me envolve e espero que esta árvore que se ergue junto a mim diga uma qualquer palavra, me dirija um momento de atenção; espero; e enquanto o faço, grito comigo próprio: as árvores não falam, palerma. Contudo: ignoro-me, sei perfeitamente que as árvores não falam; mas parece-me menos impossível esta árvore tossir um pouco para captar a minha atenção e, depois, perguntar-me o nome do que algum homem ou mulher perceber a minha presença e partilhar comigo a sua existência.

Deverá ser por acreditar, infantilmente, na possibilidade de estabelecer alguma espécie de comunicação que começo a falar-lhe.

Pergunto: nunca te sentes sozinha?

Espero alguns momentos, dando-lhe tempo; mas como sei que jamais me responderá, o seu silêncio não me fere, a sua indiferença não me magoa. Apenas a decepção magoa; mas as árvores são incapazes de decepcionar.

Pergunto: as árvores não têm nome, pois não? É que se tivesses nome, pelo menos terias essa companhia, estarias menos só.

Tento imaginar que nome poderia ter esta árvore; ou que tipo de nome teriam as árvores, caso precisassem de nome; mas, para que precisariam de nomes, no seu mundo de silêncio e quietude?

Digo: talvez as árvores sejam como os índios e tenham aqueles nomes estranhamente reais, estranhamente poéticos, estranhamente cruéis, como Urso Zangado ou Cavalo Veloz ou Doninha Mal Cheirosa ou Rato do Deserto ou Serpente Venenosa, nomes que caracterizam na perfeição o seu proprietário, estigmatizando a sua personalidade; percebes o que quero dizer? Tu poderias chamar-te Robustez ou Folhas Verdes ou Tronco Curvo e Vigoroso ou Aquela que Faz Sombra.

As folhas agitam-se ao sabor de uma vaga brisa: não como se fossem forçadas ao movimento pela força invisível do vento mas como se se agitassem por si, numa tentativa de captar uma carícia. Gostava de sentir o vento no rosto, o vento a agitar-me o cabelo; mas nem isso me é concedido.

Pergunto: gostas de ser árvore?

Escuto o silêncio, permito que se arraste, saboreio-o. A companhia do silêncio é preferível à companhia do nada.

Digo: houve alturas da minha vida em que teria gostado de ser árvore, em que teria apreciado uma existência contemplativa, ser apenas uma mancha dissimulada na paisagem; sim, houve muitos momentos em que desejei a passividade: teria sido bom, teria sido fácil.

O mundo passa por mim, por nós: agitado, frenético, compulsivo; deixamo-lo ir.

Digo: para nós, humanos, o maior drama existencial é a incapacidade de aceitar a morte, ou seja, de aceitar a perda da faculdade de sentir o mundo; e para as árvores? Imagino que será a impossibilidade do movimento, da mudança.

Agora, já não há brisa; e as folhas estão perfeitamente imóveis; como se me escutassem.

Digo: há uma estória que li algures, noutra vida, e de que gosto muito; conta o drama de uma árvore que durante toda a sua existência de décadas apenas teve o desejo de viajar; vivia amarrada à terra, que a suportava e alimentava, e sonhava com o dia em que essa mesma terra libertasse as suas raízes, sonhava com o dia em poderia passear pelo mundo, como os pássaros e como os coelhos e como os esquilos e como as formigas; e com tal intensidade desejou, que o sonho se concretizou: um dia, vieram homens com máquinas ruidosas e fumegantes, que a rodearam, que a olharam com cobiça, com despudor, com superioridade; primeiro, teve medo; e até sentiu um pouco de dor, quando as máquinas fumegantes e ruidosas penetraram a sua madeira; mas tudo se passou muito depressa: e logo deu por si arrastada por um tractor, empoleirada no dorso de um camião. E quando o camião se arrastou vagarosamente pela estrada sem fim, percebeu que o sonho se concretizava; viajava: florestas imensas, prados verdejantes e até o mar azul desfilaram perante si. E tão intenso foi o prazer que sentiu que nem por um momento compreendeu que estava a aproximar-se da sua morte, que o modo como fora arrancada da terra consistira num assassínio cruel e irremediável e não numa libertação. E mesmo que compreendesse, não se importaria; porque a concretização de um sonho vale mais que a vida.

Calo-me; por um momento, nada acontece; mas depois, as folhas da árvore agitam-se preguiçosamente, contorcem-se com suavidade. Poderá ser apenas o vento; ou não. Talvez não seja apenas o vento.

Pergunto: é uma estória bonita, não é?

Permito que o silêncio nos envolva, nos una.

Digo: penso que já encontrei o nome adequado para ti: Aquela que Sabe Escutar; que achas?

Há pessoas que passam: corpos com almas lá dentro; almas prisioneiras da carne, como as árvores são prisioneiras da terra. Mas é como se estivéssemos sozinhos, eu e Aquela que Sabe Escutar, como se o mundo fosse só nosso; sinto uma farrapo de intimidade; na verdade, sei que estou apenas a imaginar mas prefiro um farrapo de intimidade imaginado que nada.

Pergunto: como é que as árvores fazem amor?

E acrescento: pergunto-te isto porque o modo como as árvores fazem amor poderá ser semelhante ao modo como os anjos fazem amor. Percebes? É que se eu descobrisse como os anjos fazem amor, se me fosse concedido o privilégio de partilhar desse segredo, já não precisaria de corpo, poderia libertar-me da angústia da sua perda; poderia ser feliz. Um anjo feliz.

Aquela que Sabe Escutar não responde; é óbvio que não responde; mas o facto de ter verbalizado o meu mais íntimo sofrimento, o facto de o ter libertado, anestesia-me um pouco; e durante alguns instantes, não sinto dor; há apenas uma insinuação de paz que me invade, que me aconchega, que me serena.

Levanto-me e, com passos vagarosos, afasto-me; não me despeço porque sei que regressarei. Caminho; perguntando-me se não poderia partir pelo mundo em busca da companhia das árvores; falando-lhes e aprendendo a decifrar o seu silêncio; dando-lhes nomes, baptizando-as de acordo com a sua personalidade, de acordo com a sua disponibilidade. Sim, poderia fazê-lo: seria uma forma de estar menos só.

Paulo Kellerman

Abril de 2003


II

Partes, como tantos durante tanto tempo o fizeram. Mas a tua partida assinalo-a: Partes. Sinto, gradualmente, o teu afastamento. E isto é importante, porque por estranho que te pareça, não é à lentidão que estou habituada. Tudo o que se passa comigo é muito mais abrupto que aquilo que os teus sentidos podem perceber. É brusco. E talvez seja muita sorte a minha não estar familiarizada com a marcha lenta da solidão de que me falaste.

Deixo-te ir. Em silêncio. Um silêncio que se impõe, que para mim tem um significado que desconheces. Eu podia tê-lo quebrado, podia fazer estilhaçar palavras contra o chão que te sustenta. Mas só a mim o silêncio fugiria. Tu continuarias, plácido, envolto nele, achando-te palerma por esperares ouvir-me. Já o fiz várias vezes, no passado. Tanto quis ser ouvida que me apus violentamente à ausência de voz.

Prometes que regressarás a mim. És o primeiro que o faz. Não me importa que te esqueças, não me interessa que não voltes. Tantos já prometeram voltar: os apaixonados combinam amores, as crianças choram para voltar na tarde seguinte, os putos planeiam mais um jogo de berlinde, os dealers que querem um canto, os homens que querem uma cama, o ébrio que quer mijar, a puta que se quer despachar, o suicida que se quer enforcar. E todos voltam.

Mas vês: nenhum volta por mim. Até que chegaste, e me falaste, e me fizeste ouvir, e me pediste o que não te poderei dar, e aceitaste o que te dei, e agora vais, com a tua promessa. E repito-te: não esperarei por ti. Já me deste tanto.

O que te diria se me pudesse fazer ouvir?

Talvez que quando chegaste a tua presença me surgiu exactamente igual à de todo o vulgar humano, que não te distingo, que para mim se esbatem as diferenças de que me falas. À minha sensibilidade apresentas-te igual ao que querias ser.

Só porque me disseste percebi que eras um anjo.

Há uns bons 230 anos costumava vir para cá um homem, a quem eu ouvia os outros chamarem maluco. Vinha todos os dias mas só na penumbra da noite. Sentia-o subir-me para o braço mais alto, murmurando palavras imperceptíveis. No alto repetia-se o espectáculo: “Não sabeis quem sou? - gritava - Pois riam-se que vos arrependereis”.

Na última noite senti-o subir a meus braços e cair a meus pés. Seco, duro, depois húmido-quente-frio. Chovia e trovejava, pelo que ninguém senão eu ouviu as palavras que nunca hei de partilhar: “Sou um Anjo”. Foram as únicas três.

Ignorante sofri a morte do anjo durante o crepúsculo, bebi-lhe o sangue como faço, indiscriminadamente, a todos os corpos que se esvaziam perto de mim.

Só na manhã seguinte com a chegada sucessiva dos cães, das crianças, das mulheres e dos guardas reais fui percebendo a sua história: A do homem que se apaixonara por uma freira e tornou o sonho a sua realidade, e estendeu a mente até se sentir mais próximo dela, e do seu delírio fez felicidade contínua, e que no acto final voou e gritou e foi: anjo.

Como a minha irmã de que me falaste também ele se soube iludir e fugir ás dores, buscou o prazer na loucura, procurou a ignorância pela qual pediste.

Vês: Trocámos estórias.

Fui percebendo depois o que é um anjo, sem que nunca antes nenhum me tivesse visitado ou, pelo menos, se tivesse identificado. E confesso-me: pensei que se um dia um viesse, finalmente, poderia ser ouvida. Que para ele o meu pensamento fosse audível. Tantas foram as fábulas que ouvi a propósito da vossa casta, sobre a puerilidade da vossa intenção, a magnificência do vosso acto, a autoridade do vosso saber, que pensava: Nada lhes está interdito!

E achava: quão tétrica será a existência de quem existe para ser depósito de esperança, confidente do apodrecido, sabedor do desespero, mensageiro do devir?

Sinto-nos íntimos. O que para ti foi farrapo para mim foi laço. E compreendo-te, que eu, sem poder falar, ouvi e fui ouvida.

E sinto-nos semelhantes: dois espíritos colocados em contacto com os humanos, invejando-os - tu a carne, eu a voz.

Não lamento a imobilidade, é, aliás, uma coisa que não faz sentido para mim, como para uma abelha não fará o açúcar. Percebes: tenho mobilidade, a minha forma de mobilidade. A realidade é-me trazida pela longevidade, não preciso de sair do sítio para que as coisas me cheguem.

A árvore de que me falaste seria, provavelmente, nova, na idade em que é cedo para perceber e aceitar as limitações, para saber contorná-las, quando é impossível ser-se contido, quando se vive em paixão e pouco se sabe de amor -quando se pode morrer por um sonho.

Somos, os dois, anciãos desta superfície, sabemos já, que nem tudo se pode vencer. Sabemos os dois que as angústias não desaparecem. Mas hoje desenhaste-me boca e lábios, deste-me voz e beijaste-me, fizeste o teu milagre, usaste o teu poder demiúrgico, foste anjo para outro.

E aliviaste-me. Os prazeres dionisíacos que tão concretamente nos fogem serão por mim esquecidos. Até quando não sei.

Partes e eu refugio-me, calada, em mim. Digo “olá” ao dia em que me cruzei com um Anjo: Aquele que Soube Escutar-me.

Partes. Para sempre.


Fábio H. L Martins

Abril de 2003



(Clique para ler as partes III e IV)


9 comentários:

Maria P. disse...

Obrigada Fábio pelas tuas palavras na Casa.
Já estive a ler, e gostei, são textos com profundidade.Com parágrafos ricos, com prosa poética de uma forma muito bem conseguida. (desculpa esta análise, defeito profissional)
Um beijinho.

Fábio disse...

As palavras de Maio são muito espontâneas :) . Não me peças desculpa por uma análise que soube tão bem. Ainda agradeço. Defeito profissional?? Fiquei curioso. O inverno é teu, vai passando.
beijinho.

sem-comentarios disse...

Nada a dizer, nada a acrescentar, a não ser a reincidente, renitente, constatação da solidão humana.

Excelente o teu texto :)***

Fábio disse...

Sem comentários: obrigado por mais uma visita tão boa. A solidão dilacera-me(nos) todos oso dias. O texto não é só meu, como terás visto.
Beijinho grande

Anónimo disse...

Magnífico texto! Excelente leitura para me acompanhar neste momento em que me sinto tão só, nesta urgência que nunca mais acaba...
Beijo grande, Zé.
P.S.: Linda fotografia, tirada no dia mais bonito do ano: o do nosso aniversário! Só que acabei ficando meio triste por lembrar que, nesse dia, recusaste o meu convite para almoçar, o que me deixou magoada...

Fábio disse...

Margalinda: Terei perdão pela falha fatal no dia especial? Terei capacidade para te ajudar a superar solidões para além de com textos (algo) desolados\desencantados?

Beijo maior

Anónimo disse...

Quanto a perdoar-te, vou esforçar-me, porque sou muito melindrosa, e tenho muita dificuldade em superar as mágoas.
Quanto à tua capacidade de me ajudar a superar solidões, nem sei muito bem que te diga... Quem me dera poder estar sempre perto de ti!
Beijo carinhoso.

Anónimo disse...

"Deixo-te ir. Em silêncio. Um silêncio que se impõe, que para mim tem um significado que desconheces. Eu podia tê-lo quebrado, podia fazer estilhaçar palavras contra o chão que te sustenta. Mas só a mim o silêncio fugiria.(...)Já o fiz várias vezes, no passado. Tanto quis ser ouvida que me apus violentamente à ausência de voz."

és perfeito...Sossegas-me o espirito...longo é o meu caminho...

Beijo

Fábio disse...

Querida anocas, obrigado pelo exagero. Sabe sempre bem nos languidos dias de férias!
Beijinho