quarta-feira, julho 19, 2006

Sombra de homem nenhum

(fotografia da chegada ao porto de Le Havre a 27/4/2006)




“Sombra de homem nenhum”

Uma sombra perdida numa multidão de homens exultantes. O sol no pináculo do seu ciclo lança-se a pique: É meio dia.

Uma sombra sem homem. Pensa:

Ainda há minutos éramos multidão de espectros cinzento-apagado, disformes, dançantes, esguias e escorreitas, estendidas e agrilhoadas aos pés de carne do nosso molde humano. E eu senti-me perdida, porque de todas nós só eu não tinha a minha metade física. Afligi-me primeiro por me sentir diferente e só depois percebi que me era concedida uma liberdade inédita no meu mundo reflectido. Tentei perceber as delícias da possibilidade de decisão nos gestos, mas cedo me apercebi que, quem sabe à custa de uma prolongada clausura de ímpetos, todo o movimento me era interdito. Parecia perra. Percebi que precisava do meu equivalente animado para me insuflar, para me fazer sentir existente. E então decidi: assim não existo, e se assim é, nada me permite acreditar que a minha outra metade exista ainda. Ou também. É provável que também ele se sinta (ou esteja verdadeiramente) perdido, desorientado, acabrunhado pela imaterialidade a que a luz o condena.

O medo da passagem do tempo dilacera-me devagar. Não quero que ele prossiga sem que eu entenda o que se passa. Apetece-me paralisar as nuvens, acreditar que é a terra o centro do universo e congelar o sol, ali em cima. Assim todas as outras sombras continuariam na sua sesta, encolhidas debaixo dos corpos e formas. E eu estaria sozinha. Poderia procurar e ser procurada. Mas dentro de minutos todas voltarão para o seu baile desenfreado, para a sua existência eternamente a dois, numa cumplicidade eterna e imune: a ciúme, a fugas, e até a palavras. Serei eu a única sombra incapaz? A única que falhou na tarefa inata de estar perto? Desejo ao menos que se faça noite, e que a penumbra me abrace e me esbata os contornos. E condene todas nós ao amanhã.

O chão desliza imperceptivelmente, indiferente a quaisquer desejos, o astro luminoso deixa-se ficar, chegam as outras silhuetas que de imediato se anexam aos respectivos amantes. Uma sombra perdida pensa:

Existirá maior solidão que a que se sente quando a companhia chega? Haverá maior vileza que a ausência de memória? Que posso procurar se me parece que a minha existência começou com a angústia do isolamento?

Nisto abre-se um clarão perto dela, alguém se aproxima com um séquito exuberante atrás, por instantes pensa: “ que sombra estranha ele traz, não pode ser dele. Então é ele. Fui encontrada”. Mas apercebe-se do guarda sol.. Fica à espera. Da amálgama de sons que explode naquela praça calcetada apenas ouve algumas palavras. As suficientes: “e foi aqui que o nosso Juanito se tornou um Deus”, ”mais de 800 kg de músculo selvagem:”, ”brindemos à sua coragem”.

Uma sombra que não o é, pensa:

Agora lembro-me! Sou mancha de sangue e estou aqui entranhada. Sou suspiro de touro e em vez de simbolizar vergonha significo valentia! Aos pés de que homem me queria eu agarrar? Não sou sombra de homem nenhum. Sou de todos.

Fábio H.L. Martins, Maio de 2003

2 comentários:

Anónimo disse...

Fantástico... De uma sensibilidade incomparável...És lindo mano ( não consigo escrever nada bonito para ti, pois a emoção proíbe-me de imediato) e afinal escrever bonito é contigo...
Nunca pensei em ser sombra, mas dou por mim a imaginar-me como uma sombra de ti, não presa, não agarrada, mas entranhada com sede de beber de ti, de viver de ti, de respirar de ti...Uma sombra apenas presa à liberdade de viver...de ser feliz...uma sombra de ti.

Fábio disse...

de tudo o que tenho vivdo de tão intenso neste querido blog ainda nada se comparou a isto.
Fazes-me chorar. Sê minha sombra sempre e deixa-me, ao mesmo tempo, ser a tua. Aprendo tanto. Ensinas-me-te a amar!
E eu amo-te.