“O Jornal do dia seguinte”
Um rosto sem traços, um par de olhos sem expressão, uma gargalhada gutural sem profundidade – que ecoa, ecoa, ecoa. A fulminante trindade que me percorre, quando o sono se esvai e o novo dia se insinua. E de repente percebo-lhe o significado: Medo. Medo que me povoa os sonhos e segue inexorável, torturando numa moínha fina – as manhãs, os lentos círculos solares, as frágeis despedidas lunares.
Acordo enquanto o meu alter-ego onírico grita estridente, desesperado, cansado. E acordo eu-mesmo: suado, febril, ofegante, estriduloso.
De relance percebo, no espelho, estampada e descarada, a expressão inequívoca do atordoamento. Enquanto escolho apenas uma das escovas, na tentativa de abreviar a minha passagem pela divisão que me mostra, racionalizo. Tento dar ordem à tempestade cataclismica que me inquieta (escolho a dos dentes) e pensar: “é só imaginação”; “vais ver que não passa de uma motivação lógica”. E invariavelmente chego a: “e se deliro, e se me torno psicótico, e se são alucinações, e se o meu avô foi mesmo esquizofrénico, e se...”.
Interrompo-me com a fuga, tranco os pensamentos na casa de banho, visto-me depressa, dirijo-me ao café.
Tudo começou à duas semanas atrás, no café. No “meu” café.
Todos os dias; à mesma hora, na mesma mesa, juraria que bebendo o mesmo café e comendo a mesma meia-torrada, vestindo a mesma gabardine grená, com a mesma expressão ténue que os meus sonhos exageram: o mesmo homem. Nada que me inquietasse não fosse eu ter percebido que, tendo ele um jornal com o mesmo título do meu, se fazia destoar porque a capa do dele era diferente. Ainda pensei: “edições diferentes do mesmo diário”. E por aqui me tinha ficado não fosse a repetição ter-me tornado maníaco. E comecei a sentar-me na mesa mais próxima. E tentei espreitar-lhe por cima do ombro. Mas ele era...fugidio.
Até que há dois dias aconteceu: ele levantou-se e foi à casa de banho. Pálido, espreitei:17 de Junho. Olhei para o meu:16 de Junho. Esfreguei os olhos. Confirmei. Levantei-me, caí, paguei a conta e saí a correr. Olhei para trás e ele chegava à mesa, com um sorriso sardónico firme por baixo do bigode alinhado.
E desde aí invadiu-me os sonhos.
Chego ao café. Hoje vou confrontá-lo. Nem o director de um jornal o pode ter com tanta antecedência.
Quando entro esbarro com uma gabardine grená que sai. Olho para A Mesa: Ninguém para além do Jornal. Hesito. Olho para trás e ele corre fintando o trânsito. Decido-me. Persigo-o desenfreado, e ele, claramente, foge. Não sinto o martelar do cansaço, mas o coração corre mais que eu.
De repente ouço: um chiar agressivo. De repente ouço: gritos e buzinas. De repente sinto: dor, anestesia, frio. De repente percebo: nada.
No café repousa o Jornal e no canto superior esquerdo da capa está escrito: “Jovem promessa do teatro português morre atropelado em trágico acidente em cadeia”.
Terá a morte vindo avisar-me? Dar-me uma segunda oportunidade?
Se eu soubesse que a morte veste grená, alinha o bigode e se anuncia...
Fábio H.L. Martins, Maio de 2003
5 comentários:
Um dos primeiros textos que me deste a ler. Excelente! Por vários motivos: a infusão de medo que nem em sonhos nos dá tréguas e que nos tolhe logo ao acordar se não lhe fizermos frente; a coragem que é necessária para o enfrentar mesmo que isso implique alguns "acidentes/atropelamentos" de percurso; a aprendizagem contínua que é a leitura dos sinais e estímulos exteriores; os pequenos resquícios kafkianos que me parece haver aqui e ali no texto; a inegável qualidade da escrita; a mudança para um registo vertiginoso aquando da perseguição; as quatro frases com que descreves o acidente e a presciência da morte; a metáfora da morte que sendo fugidia não nos passa pela cabeça que se faça anunciar... Por tudo isto só me resta dizer: muito bom! :)
Bom fim-de-semana para ti e para a Angi!
Sonhos, certezas e incertezas.
Não seria antes um tempestivo acordar, após 32 horas de anestesiante e
profundo sono, em que, até a simples máquina controladora do tempo adormeceu?
Trata-se de um sonho;
em sonhos não existem limites.
-Sendo pela primeira vez um membro interactivo e após esta breve e
inexperiente leitura, posso afirmar e sem dúvida: excelente conto, excelente
escrita. Parabéns.
Hesitei em ficar humildemente silenciosa mas achei melhor para retribuir a visita assinalar a minha presença. Gostei muito do que li, por estar muito bem escrito e ser interessante.
E também me deixou humilde o primeiro comentário. Caramba que crítica bem feita. Agora vou humildemente recuperar para outro lado, para ver se ainda consigo escrever hoje alguma coisa.
um beijinho
CLÁUDIO: que bom saber que se é lido com o entusiasmo e atenção com que se escreve.. Mas és tu mesmo, profundo em tudo que fazes, seja criativo ou contemplativo. E muito obrigado.. Fazes-me corar
PEDRO: Muito Bem vindo! Se é assim que interpretas o conto então é exactamente assim que ele é! Não me interessa afirmar ou negar a tua impressão! Gosto que gostes do conto que descobriste dentro do meu. Passou a ser nosso. No fundo fazemos isso sempre que lemos qualquer coisa, não é?
Muito Obrigado.
REDONDA, que bom (re)encontrar-te de forma não fortuita, sempre com o Cláudio a apadrinhar-nos!
Espero que encontres aqui mais um pequenino porto de abrigo para noites de tempestade (cibernáuticas ou não), e que percas sempre que esgrimires argumentos com essa humildade inibitória.
Os comentários serão sempre a parte mais interessante deste cantinho, são o motivo pelo qual ele existe. E com voçês por aqui..
Obrigado, navegarei pelo teu Porto assiduamente.
Beijinhos a todos!
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